PUBLICADO EM 28 de set de 2020
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Machado de Assis, o menino de rua que virou presidente da Academia

O menino pobre, que perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro, tornou-se fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras

Por José Carlos Ruy

Machado de Assis talvez tenha sido o escritor brasileiro mais completo não só do ponto de vista literário e estilístico, mas também social – ele percorreu, ao longo da vida, todos os degraus da sociedade carioca, de baixo para cima.

Mulato, teve origem muito humilde. Nasceu no morro do Livramento, em 21 de junho de 1839, filho do pintor de paredes Francisco José de Assis cujos pais – portanto, avós do escritor – eram ex-escravos, alforriados, e da lavadeira portuguesa Maria Leopoldina da Câmara Machado. Ambos muito pobres, foram agregados de Maria José de Mendonça, viúva do senador Bento Barroso Pereira. A viúva permitiu que morassem em seu terreno. Mesmo humildes, tinham a vida organizada – eram casados legalmente e ambos alfabetizados, coisa rara entre o povo pobre na época. Além deles, as notícias sobre antepassados de Machado de Assis são escassas.

O menino Machado de Assis frequentou uma escola pública, mas não foi aluno aplicado. Serviu também como coroinha e ajudava nas missas ao Padre Silveira Sarmento, que lhe ensinou noções de latim e ficou seu amigo.

Machado de Assis tinha 10 anos de idade quando morreu sua mãe. Seu pai mudou-se então para São Cristóvão e se casou com a mulata Maria Inês da Silva, a mãe adotiva que cuidou do garoto depois da morte do pai, que aconteceu pouco depois.

“Maria Inês foi a primeira mestra de Machado de Assis”, diz a biógrafa Lucia Miguel Pereira; “ensinou-lhe o pouco que sabia, as letras, as primeiras operações”, antes de matricular o menino na escola pública.

Esta escola seria “a da rua do Costa, ou a da rua do Piolho? De ambas fala ele em seus livros. O mestre é que é mais ou menos o mesmo nas duas evocações” (Pereira: 1936).

Maria Inês se empregou como doceira numa escola no bairro, e cabia ao garoto a tarefa de, com um tabuleiro, vendê-los pelas ruas – atividade que o levou a perambular pelas ruas, gravando na memória situações, imagens e personagens que mais tarde povoariam seus escritos. Maria Inês foi mãe, amiga e leitora das primeiras publicações de Machado de Assis.

Consta que ele ficou amigo de um confeiteiro francês, empregado numa padaria do bairro que, à noite, ensinava ao menino o idioma de Pascal, Montesquieu, Balzac e outros autores que deixaram sua marca no escritor que surgia.

Ao que tudo indica, o rapaz tinha facilidade para aprender idiomas. Era ainda jovem quando foi iniciado no inglês, ensinado a ele pelo escritor José de Alencar. Começou também a estudar o grego, ensinado, de maneira igualmente informal, por outro amigo, em 1866, quando tinha quase 27 anos de idade.

Desde menino desenvolveu a voracidade pela leitura que o acompanhou pela vida afora. Sem dinheiro, muito jovem, tornou-se um frequentador assíduo do Gabinete Português de Leitura e, na barca que o levava até o Centro, ia calado, com a cara enfiada num livro.

Machado de Assis – que, na pia batismal, recebeu o nome de seus padrinhos -Joaquim e Maria – foi um menino pobre, magrinho, de pele escura e traços de negro, tímido, gago, que se achava feio e sofria de um mal terrível, a epilepsia que nunca chamou pelo nome mas designava as convulsões que sofria como “coisas esquisitas” (Pereira: 1936).

Esse brasileirinho que andava descalço pelas redondezas do morro do Livramento, veio a se tornar o grande escritor brasileiro, reconhecido em seu tempo – mesmo pela elite cujas mazelas ele desprezou e narrou de maneira implacável em sua literatura – e, em 1897, aos 58 anos de idade, esteve entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras, sendo eleito seu primeiro presidente.

As “cenas da meninice nunca mais se apagaram da sua memória. A Saúde, a Gambôa, São Cristovão e os morros adjacentes vivem na sua obra” (Pereira: 1936).

Aquele menino tímido lutou para deixar a pobreza e subir na vida. Abriu seu caminho com trabalho, afinco e muito tato. Tinha 15 anos quando, em 1854, seu primeiro soneto foi publicado, dedicado à “Ilustríssima Senhora D.P.J.A”, e assinado como “J. M. M. Assis”, no “Periódico dos Pobres”.

Nessa época, passou a frequentar a livraria do jornalista e tipógrafo Francisco de Paula Brito, um humanista cujo estabelecimento era ponto de encontro da sua Sociedade Petalógica, que Machado – timidamente – frequentou, mais ouvindo do que falando.

Tinha 17 anos quando começou a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. Logo, começou a colaborar na revista “A Marmota”. Foi o início de uma carreira que começou como poeta, depois jornalista e logo contista e romancista que ganhou renome. Chamou a atenção do diretor da Imprensa Nacional, o romancista Manoel Antonio de Almeida (autor de “Memórias de um Sargento de Milícias”), que o apoiou e incentivou.

Começou em uma ocupação operária – tipógrafo – e, em pouco tempo, foi promovido a revisor. Trabalhou na Imprensa Oficial de 1856 a 1858. Depois, convidado pelo poeta Francisco Otaviano, tornou-se colaborador do “Correio Mercantil”, importante jornal da época, onde escreveu crônicas e revisou textos.

Aos 21 anos de idade Machado de Assis era conhecido nas rodas intelectuais cariocas.

No final da década de 1860 conheceu Carolina Augusta Xavier de Novais, portuguesa, irmã de seu amigo Faustino Xavier de Novais. O casal apaixonou-se e, em 12 de novembro de 1869, se casaram, depois de enfrentar a oposição de outros dois irmãos de Carolina, que não o aceitavam por ser mulato – a cor de Machado foi, diz Lucia Miguel Pereira, a única objeção que fizeram contra ele.

Carolina, uma mulher muito culta, se tornou na grande parceira e colaboradora do escritor – foi sua primeira leitora, confidente e “crítica” assídua do que escrevia.

A imagem usada por Lucia Miguel Pereira é veemente – ele criou “uma armadura, uma casca de caramujo dentro da qual se pudesse abrigar”. Criou uma concha para si próprio, dentro da qual se escondia o tímido e reservado, que só se exprimia através da escrita. Evitava dar opiniões de viva voz, mas abria sua alma na escrita. Tornou-se, diz a biógrafa, um homem “tão recatado, tão cioso da sua intimidade, só teve um descuido, só deixou uma porta aberta: os seus livros. São eles que nos revelam o verdadeiro Machado.”  E pergunta: “Conservando, nas entrelinhas, a verdadeira figura do criador, não o reabilitarão os seus livros?” (Pereira:1936).

Machado de Assis foi um homem reservado, que procurava esconder sua origem humilde, anotou a biógrafa. Seu esforço foi impor-se aos brancos, aos bem nascidos. Num movimento instintivo de defesa, “tratou de se esconder dentro de um tipo, não era bem o seu, mas que representava o seu ideal: o do homem frio, indiferente, impassível. Meteu-se na pele dessa personagem, crendo sem dúvida que se elevava, na realidade amesquinhando-se, esquecido de que seus livros o traiam – ou o salvavam” (Pereira: 1936). Uma figura, aliás, adequada ao funcionário público do ministério da Agricultura, que foi.

Este esforço para ocultar a origem humilde ajuda a explicar algo que muitos consideram um desvio de caráter do escritor. Numa certa altura da vida, já reconhecido como jornalista e escritor, passou a evitar aquela que cuidou dele depois da morte do pai, a mulata Maria Inês, sua mãe substituta. Muitos, críticos severos, o acusam de ocultá-la para esconder seus antepassados negros. O mais provável é que Machado de Assis ocultava não suas origens africanas, mas seu passado humilde e pobre. Mesmo porque nunca escondeu os visíveis traços negros que aparentava. “Mulato, ele o era sem disfarce”, diz a biógrafa; “a raça gritando na vasta e rebelde cabeleira que lhe caía sobre as orelhas, nos lábios grossos encimados pelo bigode ralo e duro, nas narinas achatadas” (Pereira: 1936).

Machado de Assis foi autor de dez romances, 216 contos e mais de seiscentas crônicas, além de poesias e peças de teatro – obra que o coloca ao lado de gigantes como Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Melville – autores que, como ele, estão entre os fundadores de suas literaturas nacionais. Tinha  69 anos de idade quando, em 29 de setembro de 1908, despediu-se da vida, na casa de Cosme Velho (Rio de Janeiro), assistido pelos amigos, entre eles grandes escritores como José Veríssimo e Euclides da Cunha.

Na noite anterior, foi visitado por um rapaz de 17 anos, que lhe rendeu a última homenagem – era Astrojildo Pereira que, poucos anos depois se tornaria importante líder operário e fundador do Partido Comunista do Brasil.

Machado de Assis foi, em seus escritos, um crítico severo da sociedade brasileira, da elite cujos costumes descreveu com palavras muitas vezes duras e implacáveis.

Nunca aceitou a escravidão, e em seus escritos há várias passagens onde condena com veemência esse sistema iníquo. Como pensador e escritor, acreditou na igualdade de todos os homens, e deixou vários registros dessa crença – opinião que inclusive o levou a uma rara manifestação pública, ele, normalmente tão reservado e que só dava opiniões em seus escritos.

A comemoração da Abolição da Escravatura mereceu dele aquela efusão pública, além do registro escrito de seu contentamento.

Na crônica que publicou em “A Semana”, na “Gazeta de Notícias”, em 14 de maio de 1893 – cinco anos depois da abolição – ele descreveu aquele dia de festa e sua participação nele. “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente [Princesa Isabel] sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta. (…)Verdadeiramente, foi o único dia de delírio que me lembra ter visto.” Reproduziu estas palavras,             quase literalmente, ao descrever o dia 13 de Maio de 1888 no romance “Memorial de Aires”.

O tímido e reservado Machado de Assis não foi um revolucionário, do ponto de vista político e social – mas tinha ideias que destoavam das dominantes em seu tempo.

Foi radical – democraticamente radical -, mas sempre por escrito. Como na crônica “Canção de Piratas”, de 22 de julho de 1894, publicada na “Gazeta de Notícias”, na qual se referiu de maneira elogiosa e poética e ao arraial de Canudos e a Antonio Conselheiro: “Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens perfeitamente armados.” (…) “Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dois mil homens, não é o que dizem telegramas e papéis públicos. […] São homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saída, e desconto por faltas. (…) Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre”.

Machado de Assis – Charge: Cãibra

É um registro, sem dúvida romantizado, dos acontecimentos no sertão da Bahia – mas inspirado por uma simpatia que não foi comum naqueles anos em que Conselheiro e os lutadores que liderava eram sumariamente classificados como bandidos ferozes pela imprensa dominante no final do século 19.

Pela letra de Machado de Assis manifestava-se não apenas o escritor famoso, o presidente da Academia Brasileira de Letras. Naquele texto, marcado pela empatia aos combatentes de Canudos, podia-se ouvir a voz, longínqua, do menino pobre que andava descalço pelas ruas do Rio de Janeiro. E se tornou o maior escritor brasileiro.

José Carlos Ruy é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista e colunista do Radio Peão Brasil.

Referências

Assis, Machado de. “Obra Completa”, 3 vol. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.

Cunha, Euclides. “A última visita”, 30/09/1908, in “Jornal do Commercio”. Publicado na antologia Canudos e Outros Temas, Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal, 1993.

Pereira, Lúcia Miguel. “Machado de Assis (Estudo Critico e Biográfico)”, Cia Editora Nacional, São Paulo, 1936

Silva, Simone da Conceição. “O preto-e-branco do escritor brasileiro. Machado de Assis, no plural ou no singular?”, monografia final de curso apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2001.

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