PUBLICADO EM 11 de ago de 2023
COMPARTILHAR COM:

Kenan Malik: a esquerda deve resgatar a vocação universalista

Kenan Malik, cujo novo livro, “Not So Black and White

O site Jacobin conversou com o escritor Kenan Malik, cujo novo livro, “Not So Black and White”, questiona raça e seu relacionamento com a luta de classes hoje, registrando a ascensão da política de identidade ao lado do declínio do movimento trabalhista e do universalismo.

Os leitores podem conhecer melhor Kenan Malik de sua coluna semanal no Observer discutindo tudo, de migração a religião e tecnologia. Mas sua bagagem está longe das páginas da mídia liberal.

Nascido na Índia e criado em Manchester, Malik se envolveu intensamente nas campanhas políticas dos anos de 1980. Lutando contra deportações, organizando patrulhas de rua contra a violência racista, ou fazendo parte nas campanhas de Newham 7 e Colin Roach, sua introdução à política veio da base. Ele passou grande parte da década ativo em uma matriz de organizações marxistas e revolucionárias.

Ele é mais conhecido hoje como um ativista pela liberdade de expressão e secularismo, e um crítico do multiculturalismo e da política de identidade contemporânea.

Seu último livro, “Not So Black and White: A History of Race from White Supremacy to Identity Politics” (Nota: “Não tão preto e branco: uma história da raça, da supremacia branca até a política de identidade”, numa tradução livre) questiona raça e seu relacionamento com a luta de classes hoje, registrando a ascensão da política de identidade ao lado do declínio do movimento trabalhista e do universalismo.

Leia aqui a entrevista:

TAJ ALI

Você pode contar mais sobre o seu passado e como isso moldou sua visão política?

KENAN MALIK

Eu cresci em uma Grã-Bretanha muito diferente da de hoje, nos anos de 1970 e 1980. O racismo era cruel e visceral e entranhado no tecido da sociedade de um modo que é muito difícil imaginar agora. Agredir paquistaneses era o esporte nacional. Eu não consigo lembrar voltar da escola sem ter estado em uma briga. Eu fui a uma escola principalmente branca. Esfaqueamentos eram comuns; bombas incendiárias – eram quase eventos de rotina. Se você fosse à polícia, seria mais provável que você fosse preso do que o racista. Foi uma época extremamente difícil. Essa experiência me atraiu ao ativismo político contra a brutalidade policial e as deportações racistas, nos anos de 1980.

Ao mesmo tempo, há um ponto que eu faço frequentemente de que se foi o racismo que me atraiu a política, foi a política que me fez ver além dos limites do racismo. Há mais para a justiça social do que desafiar a injustiça feita a mim. A cor da pele de uma pessoa ou sua etnia ou cultura não fornece nenhum guia para a veracidade ou validade de suas crenças políticas. Através dessas campanhas, eu descobri os escritos de Karl Marx, John Stuart Mill, Thomas Paine, James Baldwin, Rosa Luxemburgo, C. L. R. James, e Frantz Fanon.

TAJ ALI

Meu pai cresceu em Luton numa época parecida. Muitas das estradas que eu ando hoje eram zonas proibidas para pessoas como ele devido à ameaça da violência racista. Essa experiência moldou massivamente sua compreensão do mundo. Quando eu entrevisto antigos membros dos Movimentos Juvenis Asiáticos e Associação de Trabalhadores Indianos, fica claro que a raça era central para suas análises políticas.

KENAN MALIK

Essas campanhas estavam enraizadas em classe, tanto quanto estavam em raça. Eles viam a si mesmos como parte de uma luta mais ampla da classe trabalhadora. A Associação de Trabalhadores Indianos foi fundada nos anos de 1930 para dar voz a trabalhadores migrantes, mas ela estava intimamente ligada às lutas da classe trabalhadora na Grã-Bretanha. Os Movimentos Juvenis Asiáticos emergiram no final dos anos de 1970, ao mesmo tempo que os Southall Black Sisters, Black Panthers e Race Today Collective. Também houve organizações mais amplas, como a Liga Antinazista e Rock contra o Racismo.

Quando os Movimentos Juvenis Asiáticos se chamavam de asiáticos, não era para distingui-los dos afro-caribenhos, mas para sinalizar uma pausa consciente das formas sectárias de políticas subcontinentais. A maioria de nós pensava a si mesmo como negros, porque negro era um rótulo político, não um étnico. Nós estávamos tentando forjar uma identidade mais inclusiva. Muitos hoje pegam um ponto de vista mais estreito, identitário.

TAJ ALI

O conceito de negritude política hoje é altamente contestado, e com poucas notáveis exceções como o movimento sindical, ele desvaneceu-se amplamente como um conceito. Mais recentemente, o termo BAME [negro, asiático e minoria étnica] como um termo genérico para pessoas de cor também foi desafiado. Parece que nós estamos vivendo em uma era muito diferente.

KENAN MALIK

Em um sentido, tudo mudou muito rapidamente. Se você olha para as lutas antirracistas do início dos anos de 1980, elas eram principalmente políticas. Campanhas contra deportações, contra ataques racistas, contra a brutalidade policial, para pagamento igual nos locais de trabalho. Nos anos de 1990, muito da luta foi cultural. A questão de Salman Rushdie foi enormemente importante, como um momento divisor de águas, tanto na minha vida quanto na política britânica. Isso sintetizou essa mudança de político para cultural. Não havia algo como a comunidade muçulmana no início dos anos de 1980. No fim da década, a questão de Rushdie revelou até certo ponto que um sentido mais estreito de identidade muçulmana tinha tomado conta.

TAJ ALI

Naquelas lutas dos anos de 1970, existiu grande solidariedade entre diferentes comunidades de minorias, não importando a cor da pele. Alguns atribuem o declínio de amplas coalisões ao papel do estado em dividir as comunidades, que eram frequentemente colocadas umas contra as outras, quando para competir por financiamento.

KENAN MALIK

A ascensão do que você poderia chamar de socialismo municipal no Conselho da Grande Londres [GLC, na sigla em inglês] e a cooptação de grupos antirracistas independentes pelo estado local desempenhou um papel importante. O GLC viu combater o racismo como mais sobre celebrar diferenças étnicas e culturais. Isso se tornou parte do caráter mais fragmentado.

A velha ética universal da esquerda tinha começado a erodir. As pessoas começaram a definir a si mesmas por identidades mais estreitas e mais limitadas. Negro se tornou um rótulo étnico, em oposição a um rótulo político. E assim por diante. Você tem que explicar e compreender essa mudança para explicar a ascensão de vertentes identitárias mais fragmentadas dentro dos movimentos antirracistas e da esquerda hoje.

TAJ ALI

Você esteve envolvido em muitos grupos de esquerda décadas atrás. O que foi que te atraiu para essas organizações?

KENAN MALIK

Eu me envolvi em muitas organizações de extrema esquerda nos anos de 1980 – o Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP, na sigla em inglês), o Partido Comunista Revolucionário (RCP, na sigla em inglês), Big Flame. Eu acho que elas me deram uma estrutura materialista e progressista, através da qual compreendi minha raiva e frustração. Essa estrutura ficou comigo muito depois de eu deixar essas organizações, assim como o reconhecimento da importância do universalismo na luta da classe trabalhadora.

TAJ ALI

Em seu livro recente, você é altamente crítico da política de identidade contemporânea, e a contrasta com a luta de classes. Você pode explicar algumas dessas críticas?

KENAN MALIK

A política de identidade emerge da ascensão do pessimismo social, e de um mundo no qual a classe se tornou menos importante, e a luta de classes e a política menos plausível aos olhos da maioria das pessoas. Se você volta aos anos de 1970 e 1980, o movimento trabalhista estava profundamente imbuído com o racismo. Muitas greves que foram lideradas pela primeira geração de migrantes, como a Courtaulds Red Scar Mills [1965] e a Imperial Typewriters [1974] não foram apoiadas. Os grevistas negros e asiáticos frequentemente tinham que confrontar os sindicatos, assim como eles tinham que confrontar seus patrões.

Havia, é claro, outras greves, como a Grunwick em 1976, que mostrou as possibilidades de solidariedade. A greve da Grunwick foi em uma fábrica de processamento de fotos no Noroeste de Londres, em que os trabalhadores entraram em greve por causa das condições terríveis de trabalho, a proibição de sindicatos, e a intimidação racista. Eles receberam enorme apoio de outros trabalhadores, como mineiros, eletricistas, construtores e motoristas de ônibus. Eles tinham um piquete em massa no qual havia uma força de vinte mil protestando em um dos dias.

Então o racismo em torno do movimento trabalhista não era simples. Havia aspectos de racismo passando pelos sindicatos, assim como aspectos de sólida solidariedade entre as raças. Uma das coisas interessantes para mim hoje é que o velho racismo nu dentro do movimento trabalhista desapareceu amplamente, mas ele foi substituído por fragmentação e identitarismo.

As minorias são vistas como pertencendo a comunidades unificadas, quase sem classes, enquanto classe é uma categoria amplamente reservada para a população branca. O movimento trabalhista se tornou menos racista, mas nós também vivemos numa sociedade que tem menos vontade, ou é menos capaz, de reconhecer as minorias como uma parte integral da classe trabalhadora.

TAJ ALI

Você discute o declínio da solidariedade de classes entre raças no seu livro, com particular referência aos Estados Unidos. Mas você pode ver porque um americano negro crescendo hoje – que compreende a história da escravidão, testemunha a brutalidade policial, e talvez venha de uma comunidade segregada – pode achar difícil transcender uma compreensão do mundo centrada principalmente em raça?

KENAN MALIK

Historicamente, houve muitas tendências dentro das lutas afro-americanas que procuraram transcender a raça. Com mais pontos de vista identitários agora, nós frequentemente vemos nós mesmos em termos de nossa identidade étnica ou cultural, ao invés de compreender que nós podemos ter uma semelhança como pessoas da classe trabalhadora. Quando nós olhamos para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, nós frequentemente apenas olhamos em termos dos anos pós-guerra. O que nós chamamos de movimento dos direitos civis ressurgiu a si mesmo nos anos de 1950. Mas há uma história muito mais longa para o movimento dos direitos civis, e há um período de luta na América que é frequentemente esquecido que são os anos entre guerras, que lançaram as bases para o movimento dos direitos civis pós-guerra.

O que muitos agora chamam de sindicalismo dos direitos civis ligou a luta das pessoas negras por igualdade com a luta dos trabalhadores – negros e brancos – por salários adequados, condições, habitação, e assim por diante. Muito (embora não tudo) disso foi perdido na era pós-guerra, quando o movimento dos direitos civis ressurgiu nos anos de 1950, em parte por causa da Guerra Fria. Radicais nos sindicatos, no Partido Comunista, e, mais amplamente, na esquerda, foram condenados ao ostracismo e marginalizados. Na essência, o econômico e o político se tornaram desconectados.

Isso ficou mais claro no mundo pós-1980, no qual o neoliberalismo era muito mais receptivo à igualdade política do que à igualdade econômica. O racismo ainda existe, a discriminação contra as mulheres ainda existe, mas, não obstante, há um tipo de aceitação moral da igualdade em um nível de uma maneira que não há sobre igualdade econômica.

TAJ ALI

Frequentemente quando você critica a política de identidade, você é rotulado como um reducionista de classe. A política de identidade pode ser vista como divisiva, mas seja o racismo, sexismo, ou homofobia, não é mais fácil descontar a importância da identidade se você mesmo não é negativamente impactado pela discriminação?

KENAN MALIK

A ideia de que apontar para a importância para a classe nas nossas lutas faz você um reducionista de classe é preguiçosa. As minorias são predominantemente a classe trabalhadora, e não ver suas lutas através das lentes de classe é negar a experiência e necessidades de provavelmente a maioria das pessoas negras e asiáticas nesse país.

O Vidas Negras Importam, por exemplo, em suas próprias palavras vê a si mesmo como parte de uma família negra global. Mas a família negra global não é uma categoria mais útil do que o Muslim Ummah global, ou a afirmação de que todos os hindus têm um conjunto comum de interesses. É uma unidade confeccionada, que serve amplamente para obscurecer as divisões dentro das comunidades, e faz a criação da solidariedade através das linhas raciais mais difícil.

Uma das histórias que eu conto no livro é sobre uma greve de trabalhadores de saneamento em Nova Orleans. Em maio de 2020, os trabalhadores de saneamento entraram em greve por causa da pobreza, baixos pagamentos e falta de equipamentos de segurança durante a pandemia de COVID, assim como a recusa de reconhecer o sindicato. Quase todos os trabalhadores eram negros, e também os empregadores. Como parte de seu movimento antirracista, Nova Orleans tinha terceirizado seu trabalho de saneamento para uma empresa com donos negros. Os trabalhadores de saneamento entraram em greve três semanas antes de George Floyd ser assassinado em Minneapolis. Então eles continuaram em greve através do verão, e a onda de protestos que varreu os Estados Unidos e o mundo trouxe o racismo e as vidas negras a vanguarda da consciência global.

Mas o Vidas Negras Importam significava algo muito diferente dos dois lados da linha de piquete. Houve um líder sindical negro que disse na época que a exploração negra não acaba porque os donos da empresa são negros. E apesar daquele ano ser o ano dos Vidas Negras Importam, os trabalhadores sanitários negros foram forçados de volta ao trabalho em setembro, virtualmente não tendo ganho nenhuma das demandas. Os empregadores negros venceram; os trabalhadores negros perderam. A ideia de que há uma identidade comum apenas reforça o poder das elites negras, e diminui as vozes dos trabalhadores negros. Isso é um modo preguiçoso de olhar o mundo, que é muito útil para as minorias da classe média, mas faz um desserviço para a maioria das pessoas minoritárias que por acaso são da classe trabalhadora.

TAJ ALI

Na minha própria comunidade, proprietários paquistaneses frequentemente exploram inquilinos paquistaneses vulneráveis. Em Leicester, donos de fábricas indianos exploram trabalhadores de vestuário indianos. Você pode argumentar que a ascensão da classe média negra e asiática no Reino Unido e nos EUA tornou a classe mais importante que nunca.

KENAN MALIK

Durante o Jim Crow nos Estados Unidos, havia divisões de classe entre negros americanos, mas elas eram bastante fracas. Hoje, elas são mais fortes. Tudo, do modo que a polícia trata as pessoas, às taxas de encarceramento, é dividido tanto por classe, quanto por raça. Negros americanos são desproporcionalmente assassinados pela polícia, algum lugar entre duas a três vezes o número para brancos. Mas, paradoxalmente, não é apenas uma questão racial. Isso porque o melhor marcador para a brutalidade policial não é raça, mas nível de renda. Se você olha para as áreas pobres, você mais provavelmente vai ver as pessoas lá sofrerem brutalidade policial e assassinatos do que em áreas mais ricas. O racismo assegurou que os afro-americanos são desproporcionalmente classe trabalhadora e pobres. A desproporcionalidade entre assassinatos policiais vem em grande parte disso. Mais de 50 por cento das pessoas mortas pela polícia são brancas, e a maioria classe trabalhadora.

Se você pega as taxas de encarceramento e olha para cada nível de renda, as taxas de encarceramento de negros e brancos não são tão diferentes. Mas há enormes diferenças entre os níveis de renda; e, como você esperaria, porque os negros americanos são desproporcionalmente classe trabalhadora, então novamente eles enfrentam níveis desproporcionais de encarceramento. Se você é rico e negro, é muito menos provável que você seja morto ou encarcerado, do que se você for pobre e branco. Isso não é reducionismo de classe; isso é reconhecer a complexidade do mundo.

TAJ ALI

No seu livro, você destaca o declínio do movimento trabalhista e as consequências que isso teve. O que você acha do renascimento dos sindicatos na Grã-Bretanha no ano passado, com a histórica onda de ação de greve?

KENAN MALIK

O renascimento da atividade sindical é bom, mas, para ser honesto, a ação de greve é relativamente pequena, comparada com os anos de 1970. A vontade dos trabalhadores de fazer greve é maior, comparada com cinco anos atrás. Mas, comparada com trinta e cinco anos atrás, não é. Nós não devemos superestimar ou exagerar a mudança. Eu acho que é bem-vindo e o apoio para as greves também é bem-vindo. Mas o que eu defendo é que nós perdemos algo mais profundo, a tradição universalista radical. A tradição que vê um conjunto comum de valores e crenças que são importantes para as pessoas entre linhas raciais, culturais e étnicas. Essa tradição erodiu. A ascensão da atividade sindical não é em si um meio de transformar nossos movimentos. O que nós exigimos é um objetivo político consciente, para criar um movimento em torno de perspectivas universalistas.

Acreditar em transformação social é ser um otimista. Isso tem que ter um elemento de utopia. Eu vivo na esperança de que nós podemos criar tal movimento novamente.

KENAN MALIK é escritor, palestrante e comentarista britânico. Ele é colunista do Observer e escreveu vários livros explorando ideias em torno de raça, classe e identidade.

TAJ ALI   é correspondente industrial no Tribune.

Fonte: Jacobin

Tradução: Luciana Cristina Ruy

Leia também:

A política identitária e a ideologia liberal

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

QUENTINHAS