por Rodrigo Abdalla
Noel Rosa, um dos principais nomes da história da música popular brasileira, completaria 110 anos nesta sexta-feira (11). Nascido em 1910, ele gravou a primeira música com 19 anos e a última no ano de sua morte precoce, em 1937, vítima de tuberculosa aos 26 anos. As composições do artista são um retrato-síntese das mudanças culturais, políticas e econômicas no Rio de Janeiro no início do século 20, abordando temas que envolvem as mais diversas classes sociais.
A origem social de classe média não impediu que Noel Rosa fizesse tudo o que os conservadores dos anos 30 condenavam. Subiu a favela para fazer música e se tornou peça fundamental para a popularização do samba. O gênero era cultuado, tocado, cantado e composto principalmente por negros que habitavam os morros cariocas. Ele foi um dos primeiros sambistas brancos, com a sorte de ser contemporâneo e parceiro de gigantes como Ismael Silva, Cartola, Vadico, Ary Barroso,Orestes Barbosa e Wilson Batista, entre outros.
A delicada relação entre poesia e melodia é impecável nas composições de Noel. As palavras, com sua fonética, se casam e se fundem com as notas musicais, costuradas por harmonias talentosas. O chamado “Poeta da Vila” compôs marchinhas carnavalescas, teatro musicado, choro e samba-canção.
Em 1931, Noel chegou a cursar medicina, mas abandonou a faculdade para se dedicar ao samba. Para escrever obras com personagens e histórias ricas, Noel se inspirou em sua própria vivência na capital carioca. Nos estabelecimentos boêmios da Lapa, ele desfrutava das mais diversas companhias, bebendo e fumando sem parar. Durante anos, manteve uma relação extraconjugal com uma prostituta de nome Juraci, para quem compôs Dama do Cabaré.
A obra de Noel Rosa é extensa, com mais de 259 músicas que inspiraram artistas como Cartola e Nelson Cavaquinho, entre muitos outros. Os mais variados temas tratados por Noel tinham em comum a vida cotidiana como pano de fundo. Um grande amor, por exemplo, foi retratado na rotina de uma fábrica na canção Três apitos, de 1938, interpretada por Aracy de Almeida.
Três apitos (1938)
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos,
eu me lembro de você
Mas você anda sem dúvida bem zangada
Ou está interessada em fingir que não me vê
Um de seus grandes sucessos sem dúvida é Conversa de Botequim, de 1935. O cenário construído por Noel se passa justamente em um café, ambiente que conhecia muito bem. De maneira espirituosa, o freguês abusado dá ordens ao garçom ao ritmo da melodia composta por seu parceiro musical Vadico.
Conversa de Botequim (1935)
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
A música Com que Roupa?, de 1930, é foi o primeiro sucesso do sambista e atravessou gerações. Regravada por diversos artistas e inspiração até para comerciais, a canção diz respeito ao dilema em que o malandro se encontra ao ser convidado inesperadamente para um samba sem ter o que vestir por não ter dinheiro. Com a letra bem humorada, a canção revela também uma crítica social.
Com que Roupa? (1930)
Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar
A vida que o artista levava nas ruas cariocas era retratada de forma incomparável em suas canções. Feitiço da Vila, de 1934, é uma das manifestações de carinho que Noel Rosa tinha por Vila Isabel, bairro onde cresceu.
Feitiço da Vila (1934)
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo e faz a lua
Nascer mais cedo
Lá, em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba
A música foi um sucesso do artista já consagrado. Um antigo rival musical, Wilson Batista, que ainda buscava consolidar a carreira artística, gravou uma canção em resposta a Noel Rosa. A disputa entre os dois havia começado, supostamente, quando Wilson Batista se encantou por uma mulher, frequentadora da Lapa, que também havia chamado a atenção de Noel Rosa. Os argumentos de Wilson foram mais fortes, e ele ficou com a moça, deixando Noel desapontado. A rixa entre os sambistas é folclórica na música popular brasileira.
Quando Wilson Batista lançou em 1933 a música Lenço no Pescoço, Noel viu uma oportunidade de travar a disputa no campo musical e gravou Rapaz Folgado no mesmo ano. A tréplica de Batista no ano seguinte com Mocinho da Vila não ganhou destaque e a história ficou esquecida até que Noel lançou a música retratada acima, Feitiço da Vila, em 1934, com melodia de Vadico. Wilson Batista, então, retomou a rixa com a música Conversa Fiada, em 1935.
Conversa Fiada (1935 – Wilson Batista)
https://youtu.be/hANOGEao8WQ
É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço.
Eu fui ver pra crer
E não vi nada disso.
Diferente de Mocinho da Vila, a nova canção de Wilson Batista foi bem recebida e ganhou repercussão. Com a honra do bairro ferida, Noel Rosa compôs uma das músicas de maior destaque de sua breve e rica carreira, Palpite Infeliz, em 1935.
Palpite Infeliz (1935)
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
A disputa entre os dois sambistas boêmios e talentosos terminou em parceria. Após Wilson Batista se apresentar em um café que Noel Rosa também se encontrava, ambos se reuniram para modificar a letra e lançar em conjunto a música Deixa de Ser Convencida, em 1936.
No ano seguinte, Noel Rosa faleceu e causou grande comoção na cidade do Rio de Janeiro. A partida do grande artista teve um último episódio inusitado, registrado na edição do jornal O Globo de 6 de maio de 1937. Na despedida, alguém “introduziu-se no quarto da viúva do musicista e apanhou uma bolsa de senhora que se encontrava, de envolta com diversos documentos, a quantia de 620$000 (620 mil réis). Era essa a importância arrecadada em subscrição feita pelos artistas para auxiliar a família de Noel Rosa”, afirma o jornal.
Fonte: Vermelho
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