Manoel Francisco dos Santos, mais conhecido como Garrincha, nasceu dia 28 de outubro de 1933, no município de Pau Grande, Magé, Rio de Janeiro. O craque faria 90 anos neste sábado (28). Para homenageá-lo, reproduzimos o artigo de João Carlos Juruna, publicado originalmente em 24 de junho de 2018. Juruna baseou-se no livro “Garrincha, a estrela solitária”, de Ruy Castro.
Por João Carlos Gonçalves
Animado pelos jogos de futebol, voltei a pegar um livro que estava parado na estante: “A Estrela Solitária, Um brasileiro chamado Garrincha”, de Ruy Castro. A obra, publicada em 1995, pela Editora Schwarcz (Companhia das Letras) é considerada a mais completa biografia do craque até agora. Para escrevê-la Ruy Castro entrevistou cerca de 170 pessoas e pesquisou os 50 anos da história de Garrincha, durante dois anos e meio.
O resultado é um documento valioso, vivo e rico em detalhes sobre as mudanças vividas no mundo do futebol e as condições em que viviam os jogadores naqueles tempos. Estas mudanças se davam em uma situação em que o Brasil, impulsionado pelo crescimento de indústrias metalúrgicas, siderúrgicas e petrolíferas como a CSN, e a Petrobras, deixava de ser predominantemente rural.
A personalidade de Garrincha
Considerado um dos maiores jogadores e o maior driblador da história do futebol, Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, é humilde de nascença. Quando nasceu, no distrito de Pau Grande, Magé (Rio de Janeiro), em 28 de outubro de 1933, sua parteira, Dona Leonor, foi a primeira a notar que ele tinha as pernas tortas. Nas palavras de seu biógrafo, a perna esquerda era arqueada para fora e a direita para dentro, paralelas, como se uma rajada de vento de desenho animado as tivesse vergado para o mesmo lado. Se, em criança, lhe tivessem posto um aparelho de correção ortopédica, em pouco tempo as pernas de Manuel estariam alinhadas.
Mas quem iria pensar nisso na rua do Chiqueiro, em Pau Grande, no ano de 1933? E talvez, se suas pernas tivessem sido alinhadas não tivéssemos na nossa história, o craque de pernas tortas e espírito livre.
Com catorze anos de idade despertou a atenção do jogador do Botafogo Arati. Teve uma breve passagem pelo Serrano Foot Ball Club, time de Petrópolis, onde começou a receber dinheiro para jogar futebol. Mas aquele menino pobre, do interior e, ainda por cima, com as pernas tortas, fora repetidamente rejeitado pelos grandes clubes nos anos 50.
Até que, segundo a lenda, levado pelo olheiro Eurico Salgado para fazer teste no Botafogo, fez bonito dando umas entortadas no grande lateral esquerdo, Nilton Santos. Driblando o preconceito, Garrincha, logo eternizou a estrela solitária da camisa do Botafogo.
Até o fim da década de 1950 a estrutura do futebol brasileiro era frágil e amadora. Sintoma desta fragilidade era a saúde dos jogadores. Nem sempre as mazelas que traziam no organismo eram percebidas pelos médicos dos clubes. Segundo Ruy Castro, Garrincha chegou ao Botafogo no limite de sua fase de desenvolvimento muscular. Conseguiu encorpar com os exercícios, mas não cresceu mais nenhum centímetro além dos seus 1,69 m de altura. O Doutor Nova Monteiro chegou a dizer que ele tinha massa muscular “comparável a de um cavalo”. E esse era um dos segredos do equilíbrio do craque, os troncos que tinha como perna faziam-no resistir aos piores trompaços dos adversários sem cair. Para derrubá-lo só com rapas e rasteiras. Mesmo assim, ele logo se levantava e seguia com a bola dominada.
Entre seus colegas de time Garrincha aproveitava para desfiar seu repertório de molecagens. E os companheiros não viam maldade nas brincadeiras, mesmo nas mais grosseiras. Mas ele não era tolo. Garrincha sabia com quem brincar e era sagaz ao conhecer as pessoas.
Em 1954 já havia aqueles que clamavam pela convocação de Garrincha para a Copa do Mundo. Mas isso só aconteceu em 1958. O jogador, entretanto, nunca pareceu se importar com isso. O biógrafo não encontrou nenhum registro que afirmasse que Garrincha cogitava ser convocado, mesmo quando a Copa do Mundo na Suécia batia às portas.
1958, quando o futebol brasileiro cresceu e apareceu
Como de casos e causos é feito o futebol, cabe dizer que o mesmo não se pode falar do Flávio Costa, técnico de 1954. Sua certeza de que seria chamado para treinar a seleção de 1958 era tanta que chegou a convidar a imprensa para um coquetel em seu apartamento luxuoso, discursando, antecipada e extra-oficialmente, como técnico da seleção. Entretanto, para sua surpresa, dias depois, a Confederação Brasileira de Desporto (CBD) anunciou que o escolhido era Vicente Feola, com seus 48 anos e 105 quilos.
Feola, que já havia sido campeão como treinador do São Paulo e da seleção paulista, era respeitado, mas já estava quase aposentado por problemas cardíacos. Como ele poderia ser treinador?
Naquele contexto era possível. Feola não teria que dar conta de tudo sozinho, pois a CBD, sob comando do recém-contratado presidente João Havelange e de seu vice, Paulo Machado de Carvalho, estava com planos mais ambiciosos para aquela Copa. Pela primeira vez o Brasil ia para a Copa do Mundo com um plano neuroticamente detalhista entre 07/04, data da apresentação dos convocados a 29/06/1958, final do Mundial. Pela primeira vez a seleção brasileira adotava o trabalho em equipe! Junto com o treinador, Feola, trabalhariam o supervisor Carlos Nascimento, o preparador físico Paulo Amaral, o médico Hilton Gosling, o admnistrador José de Almeida e o tesoureiro Adolpho Marques.
Desde o hotel onde a seleção se hospedaria, passagens aéreas considerando todas as hipóteses de encerramento da participação na Copa, tudo havia sido pensado. Os 33 jogadores foram submetidos a um check-up como nunca se vira no futebol brasileiro. Castro conta que durante uma semana eles foram virados do avesso por clínicos, traumatologistas, neurologistas, radiologistas, cardiologistas, oftalmos, otorrinos e até calistas gerando assustadores resultados em laboratórios. Mesmo se tratando do creme do futebol brasileiro, dos melhores jogadores, que ganhavam os maiores salários, fisicamente aqueles homens pareciam ter acabado de chegar do mato com uma trouxa às costas e um talo de capim entre os dentes. Os exames mostraram o festival de vermes, lombrigas, anemias, sífilis, problemas de amídalas, de digestão e de circulação que assolavam a seleção brasileira. Mas o pior era o estado dentário dos atletas. Entre os 33 jogadores havia 470 dentes com problemas, uma media de cerca de 15 por jogador! O total de extrações chegou à 32 dentes, perfazendo uma dentadura completa.
Outra inovação da CBD foi incluir na equipe uma figura que naquele momento era no mínimo inusitada: um psicólogo. Até 1958 havia a ideia de que o jogador brasileiro tremia nas bases quando se tratava de Copa do Mundo. Como medida de prevenção o psicólogo passou a acompanhar os jogadores.
O minucioso planejamento ia mais longe. O regulamento disciplinar, devidamente controlados por Carlos Nascimento, continha quarenta itens, com proibições como descer para o café da manhã sem estar barbeado e falar com a imprensa sobre assuntos da seleção. Mesmo com certo exagero e com muito folclore aquela rigidez fazia sentido para o processo de mudança empreendido no futebol e todo esse aparato surtiu efeito. Cada vez mais a conquista da Copa do Mundo parecia possível.
Com o bom desempenho do Brasil no Mundial, Feola e Nascimento temiam que o clima de já ganhou entre os jornalistas e torcedores contagiasse os jogadores.
Mas o Brasil conseguiu atravessar a França e se classificar para a grande final contra a Suécia.
Era 29 de junho de 1958 e o Brasil vibrou como nunca com os gols marcados pela seleção canarinho. Ruy Castro conta que tudo aconteceu em segundos. O placar marcava Brasil 4X2 e o jogo ia acabar. Mario Américo pôs-se em alerta para invadir e pegar a bola assim que Guigue apitasse. Todo o estádio estava de pé. Guigue levou o apito à boca, Nilton Santos cruzou, Pelé subiu e cabeceou. Fez o quinto gol e caiu desmaiado. Eram 45 minutos cravados e Guigue apitou o fim da Copa do Mundo de 1958. Foi uma seleção que ficou na história projetando, além de Garrincha, craques como Pelé, Djalma Santos e Zagallo.
Vivíamos em plena época de desenvolvimentismo, sob governo de Juscelino Kubitschek. O jingle “A Taça do Mundo é Nossa”, de Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô, deu o tom das comemorações daquele primeiro título. O país começava a realizar o sonho de se tornar o país do futebol.
O auge, em 1962, e o fim da vida
No torneio seguinte, em 1962, no Chile, a festa brasileira se repetiu. Com a contusão de Pelé, Garrincha brilhou com ainda mais força na conquista do bicampeonato. Ao longo de sua vida o craque jogou sessenta partidas entre os anos de 1955 e 1966 com a camisa da seleção brasileira. Em todos esses jogos participou de apenas uma derrota (de 3 a 1 para a Hungria na Copa de 66). Atuando com Pelé, Garrincha não viveu sequer uma derrota. A Copa de 1962 foi o auge de sua carreira. Depois disso entrou em um triste processo de decadência, sobretudo devido à bebida.
Ele continuou jogando até 1972. Além do Botafogo atuou pelo Corinthians, Flamengo e o Olaria no Brasil, e pelo Atlético Junior da Colômbia. Mas cada vez mais a estrela se apagava. Tudo na vida do jogador se desfez ao mesmo tempo em que seu futebol ficava relegado ao passado. Garrincha faleceu no dia 20 de janeiro de 1983, vítima de cirrose do fígado, aos 50 anos. Em seu epitáfio lê-se “Aqui jaz em paz aquele que foi a Alegria do Povo, Mané Garrincha”.
Ele sempre será lembrado pelas conquistas, pelo gingado em campo, pela brincadeira inocente, por sua força e por sua alegria. Garrincha é um brasileiro que não nega a raça.
João Carlos Gonçalves, Juruna , é Secretário Geral da Força Sindical
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Garrincha era assim não precisava artifício…foi pra história….embora esquecido…