É o caso, por exemplo da filha de Marco Silva, presidente da Nissan no Brasil, tem 19 anos e não quer ter seu próprio carro. O fenômeno é mundial. Em algum tempo, serão raras as pessoas que comprarão automóveis e a indústria terá de enfrentar isso.
Os executivos do setor apostam em dois modelos de uso compartilhado. Um é semelhante ao das bicicletas públicas: a pessoa retira o veículo num ponto e o entrega três ou quatro horas depois. O outro é o aluguel do carro por um mês, um fim de semana, um dia ou algumas horas.
“A propriedade do veículo tende a acabar nas grandes cidades porque sempre, e cada vez mais, haverá alguma oferta de mobilidade compartilhada”, afirma o presidente da BMW do Brasil, Helder Boavida.
Ter um carro virou passado; momento é de compartilhar
O brasileiro Thomas Mueller, vice-presidente da Audi, responsável pela área de automação: desafio de desenvolver carros autônomos com nível de segurança de aviões
Marco Silva é presidente de uma montadora, a Nissan no Brasil. Por isso, é mais difícil para ele compreender os motivos da filha de 19 anos não querer ter seu próprio carro. E o caçula, de 17, sequer faz contagem regressiva até o dia em que terá idade suficiente para ter carteira de motorista. Muito diferente do pai, que se habilitou apenas três meses depois de completar 18 anos.
Daqui a algum tempo, raros serão os decididos a ter um automóvel só para si e sua família. Isso não quer dizer que os carros vão desaparecer. Mas vão se transformar num serviço cada vez mais compartilhado. O fenômeno é mundial e irreversível e a indústria automobilística prepara-se para enfrentá-lo e adaptar-se.
Muitas questões não estão, no entanto, ainda claras. “Esse é um terreno de jogo ainda muito amplo e difuso”, afirma o presidente da Renault do Brasil, Luis Fernando Pedrucci. Nesse mundo desconhecido, especialistas ainda tentam descobrir qual será o papel do fabricante, do fornecedor do serviço de compartilhamento ou de aluguel e outros que vão se agregando a essa cadeia.
A forma de usar veículos que não lhe pertencem também não será único, segundo especialistas. Mas experiências iniciais dão algumas pistas. Uma das formas de usar veículos alheios é bastante popular. Para corridas rápidas, basta acionar um aplicativo, como o Uber, ou como o mundo aprendeu há décadas: simplesmente acenar para um taxista. “O número de aplicativos aumenta a cada dia”, diz o executivo da Nissan.
O compartilhamento no qual várias pessoas usam o mesmo veículo também já existe, mas o formato que esse hábito terá no futuro não está totalmente definido.
Os executivos da indústria apostam muito em dois modelos de usos. Um deles é bem semelhante ao das bicicletas públicas: a pessoa retira o veículo num posto e o devolve três ou quatro horas depois. O outro é alugar um automóvel por um mês, um fim de semana, um dia ou apenas algumas horas.
“A propriedade do veículo tende a acabar em grandes cidades porque sempre, e cada vez mais, haverá alguma oferta de mobilidade compartilhada”, afirma o presidente da BMW do Brasil, Helder Boavida. Por outro lado, a velocidade da chegada do transporte compartilhado tende a variar, dependendo da cidade. A situação muda completamente, afirma Boavida, em áreas rurais, mais isoladas, onde o melhor acesso ainda é com o próprio carro.
Para o presidente da General Motors Mercosul, Carlos Zarlenga, proprietários e não proprietários de carros tendem a conviver por um bom tempo. “Não podemos esquecer o apelo emocional nos que sentem prazer em dirigir”, afirma o executivo.
Para os mais aficionados pela direção e com bom poder aquisitivo, marcas de luxo, como a BMW, apostam no aluguel individual. A ideia é seduzir aquele que acha a ideia de experimentar um modelo por semana irresistível.
A Porsche lançou, na Europa, no ano passado, um serviço pago mensalmente, que permite ao cliente o uso de um carro por semana. A Audi também tem um projeto piloto semelhante na Califórnia. O consumidor associa-se a uma espécie de clube e paga uma mensalidade para poder ter acesso a modelos de veículos diferentes. “Não querer ser o dono do carro não significa não querer ter um Audi”, afirma o presidente da montadora alemã no Brasil, Johannes Roscheck.
Para Roscheck, no futuro as pessoas vão escolher o carro do dia como escolhem a roupa que vão vestir. E podem optar por um ou outro modelo conforme a ocasião. “Num jantar mais chique a escolha pode ser por um esportivo, por exemplo”, afirma.
“Será mais ou menos como o que aconteceu com a música. Comprávamos um disco inteiro mesmo gostando de apenas de duas canções. Hoje compramos uma ou duas músicas por vez”, afirma o presidente da Volkswagen América Latina, Pablo Di Si.
E, para a indústria, carro compartilhado não significa um veículo feio. “Design, cores, luzes, cheiros e, principalmente conectividade continuarão a ser questões importantes para o consumidor”, destaca Boavida, da BMW.
Mas se não for por mudança de hábitos deixar de ser o dono do carro poderá ser uma consequência do aumento dos preços. Os projetos de automóveis em todo o planeta já seguem há algum tempo a tendência de eletrificação e autonomia; ou seja, dispensam o motorista.
Pedrucci, da Renault, lembra que a necessidade de incorporar novas tecnologias vai encarecer os carros. Isso fará com que o consumidor faça conta e chegue à conclusão de que não vale a pena comprar um carro para deixá-lo parado na maior parte do tempo. Os fabricantes estimam que no futuro, os carros vão rodar mais porque serão compartilhados. Aliado ao constante avanço tecnológico, isso vai exigir renovação mais frequente.
A indústria automobilística tem reforçado investimentos em parcerias. A BMW anunciou investimento de mais de € 5 bilhões apenas no desenvolvimento de carros autônomos.
O Brasil não está tão distante dessa nova realidade. No ano passado, General Motors e Ford começaram a testar um serviço por meio do qual os empregados das suas fábricas no ABC podem usar carros da frota das empresas no fim de semana. A Volkswagen também planeja algum tipo de serviço de compartilhamento no Brasil seguindo o modelo que a marca lançará na Europa em 2019. “Estamos ainda analisando”, afirma Di Si.
Histórias sobre jovens desinteressados por carros mexe com a indústria. Na quarta-feira, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) apresentou, no salão do automóvel, pesquisa sobre mobilidade que apurou que 49% dos “baby boomers” (nascidos entre 1946 e 1964) e 50% da geração X (meados de 1960 até início dos anos 80) afirmam ter carros. O percentual cai para 39% na Y (nascidos do início de 80 até início dos anos 90) e 23% na Z (entre 1992 e 2010).
Seja ou não uma tendência, a indústria não quer perder de vista a mudança de hábitos. A Hyundai tem feito parcerias com startups e montou centros de inovação em Israel e na Califórnia, onde mora John Suh, vice-presidente dessa área. “Assim como as máquinas e os televisores, os carros estão ficando mais inteligentes. Para acompanhar essa evolução, que é muito rápida precisamos trabalhar em conjunto”, destaca.
Na Audi, a área de automação dos veículos está sob comando de um brasileiro. Thomas Mueller, que é vice-presidente mundial da companhia, diz que a Audi estuda veículos autônomos há mais de dez anos. Segundo ele, os testes em estradas avançaram muito por ser mais fácil para um modelo autônomo seguir as linhas da pista ou do próprio congestionamento.
Mueller mal sabia que seu futuro seria trabalhar no desenvolvimento de veículos que dispensam o motorista quando entregou seu currículo à Audi em 2001, cinco anos depois de concluir a faculdade de engenharia em Munique. O alemão ele já dominava desde os 13 anos nos cursos que fez no Brasil.
Segundo Mueller, no veículo autônomo, um dos grandes desafios em todo o mundo é trabalhar com os órgãos de fiscalização. “Hoje existem padrões para verificação de freios, por exemplo. Mas num carro autônomo como vamos convencer o órgão fiscalizador de que aquilo é mesmo seguro?”
Segundo o executivo, o desafio de toda a cadeia envolvida na automação veicular é alcançar nos carros o mesmo nível de segurança dos aviões. Na Alemanha, Mueller também tem testemunhado como tem sido a evolução do compartilhamento dos carros. “Em grandes cidades, como Berlim, tem sido mais comum evitar o uso do próprio carro principalmente porque os preços de estacionamentos são elevado”, afirma.
A maior parte de carros autônomos já disponíveis no mercado estão no nível intemediário. Mas quando chegará o dia em que entraremos num automóvel sem a necessidade de prestar atenção em nada à nossa volta? Apesar do entusiasmo com a inovação, Mueller acredita que esse dia nunca chegará. E, apesar de viver na Europa há anos, é como bom brasileiro que ele comenta: “sempre haverá aquela estradinha escondida na entrada da casa em Ilhabela”.
FONTE: Valor Econômico