Por Ivanir Ferreira (Jornal da USP)
“Abrindo a tiros de carabinas e a golpes de machetes (um tipo de facão utilizado para poda de árvores) novas veredas a seus itinerários revoltos, e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam deixado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígine sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumultuárias, de construtores de ruínas” – Euclides da Cunha
“Foi um período que marcou profundamente a vida dos povos indígenas e da paisagem social dessa região”, disse ao Jornal da USP o historiador José Bento Camassa, autor da pesquisa de mestrado Os icebergs e os seringais: representações e projetos políticos nos relatos de viagem de Roberto Payró sobre a Patagônia (1898) e de Euclides da Cunha sobre a Amazônia (1904-1905). Camassa analisou relatórios de viagens desses dois autores enviados especiais à Amazônia brasileira e à Patagônia, na Argentina, para colherem informações sobre esses territórios que, na época, haviam sido recentemente anexados geograficamente aos seus países. A pesquisa foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Segundo o historiador, tanto Euclides quanto Payró tinham ambições intelectuais literárias publicando relatos de viagens, porque ambos os autores integraram um período de grande prestígio do ensaísmo e da viagem intelectual à América Latina. Euclides, por exemplo, queria repetir o feito do livro de sua autoria sobre a Guerra de Canudos que fazia muito sucesso editorial na época. Porém, o principal objetivo deles foi direcionar o debate público sobre a ocupação e o desenvolvimento da região, além de demonstrar a relevância que o território poderia ter na geopolítica sul-americana e mundial. Euclides seguiu rumo ao Norte amazônico, nos anos de 1904 e 1905, chefiando a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, organizada pelo Itamaraty; e o jornalista Payró viajou à Patagônia, em 1898, como enviado especial do jornal La Nación, de Buenos Aires, Argentina.
Os dois autores se deslocaram quase na mesma época para terras afastadas de suas capitais nacionais, regiões que estavam passando pelo processo de ocupação e integração territorial e viviam disputas fronteiriças. Camassa lembra que o Acre tinha acabado de ser anexado ao Brasil, por meio do acordo feito com a Bolívia pelo Tratado de Petrópolis, em 1903; e a Patagônia, que, após o processo de etnocídio (conceito usado para descrever a destruição da cultura de um povo) contra as populações indígenas locais conhecido como “Conquista do Deserto”, foi em parte anexada pela Argentina e parcialmente pelo Chile, de modo que a definição das fronteiras sulinas entre os dois países ainda estava pendente.
O Peru não reconheceu o acordo de anexação do Acre ao Brasil, porque o país também tinha interesse no território acriano. Segundo o historiador, esse era um dos motivos das tensões na região, que resultaram em conflitos de seringueiros brasileiros contra os caucheiros peruanos (seringueiros do Peru) na disputa dos seringais amazônicos para extração de látex da borracha.
Os dois viajantes descreveram as duas regiões como “espaços geográficos desamparados, mas com grandes potencialidades”. Divergiam, porém, sobre aspectos políticos. Por exemplo, como deveria acontecer o povoamento das regiões e o grau de autonomia política que elas deveriam ter.
Payró era cético quanto à atuação econômica do Estado e simpático à iniciativa privada e às ideias liberais. Influenciado pelo pensamento argentino da possibilidade de europeização do país, ele desejava uma Patagônia desenvolvida de forma mais independente do governo central da Argentina e com estreita ligação com a Europa e o império britânico. Admirando a Inglaterra, seu povo e sua cultura, Payró desejava que a Patagônia fosse povoada sobretudo por brancos imigrantes recém-chegados da Europa.
Em oposição, Euclides era nacionalista e defendia que o Estado fosse protagonista no desenvolvimento político e econômico da Amazônia e que a região deveria ser ocupada sistematicamente por brasileiros, inclusive pelos seringueiros que vinham de outros Estados brasileiros e que, em sua visão, poderiam se fixar na região.
Euclides chegou a propor a construção de uma ferrovia no Acre para melhorar o aproveitamento econômico e promover sua integração com o espaço geográfico nacional, diz o estudo. Ele entendia que o desamparo e abandono da região estavam ligados à ausência de instituições estatais no território, o que resultava em brutal violência e exploração do trabalho nos seringais.
Observando a exploração econômica do látex por grupos privados, Euclides saiu em defesa dos seringueiros, aqueles que estavam na base da cadeia econômica e na lida do dia a dia da sangria das árvores. Ele dizia que esses trabalhadores viviam em situação análoga à escravidão e todo o lucro ficava concentrado com os patrões.
O historiador diz que Euclides da Cunha apresenta grande interesse para o Brasil contemporâneo. Seus escritos podem ser revisitados para compreender a situação atual da Amazônia, que nos últimos anos tem vivido situação de calamidade pública em razão do descaso dos últimos anos do governo federal, que desaparelhou órgãos de fiscalização e desassistiu os povos indígenas. O abandono governamental levou à proliferação da pesca e caça predatórias, do corte ilegal de madeira e da instalação irregular de garimpos em terras Yanomami. “Mesmo havendo garantias constitucionais de proteção do Estado brasileiro, nos últimos anos houve tolerância e estímulo em prol da destruição e de interesses econômicos privados criminosos”, diz o historiador.
Fonte: Jornal da USP