Uma semana depois que entregadores de aplicativos fizeram uma paralisação de dois dias em Piracicaba (SP), três greves da categoria estão agendadas. As entregas de comida por app vão ser brecadas a partir desta sexta-feira (11) em Goiânia (GO) e Aparecida de Goiânia (GO), e a partir de sábado (12) em Manaus (AM).
As mobilizações por melhorias nas condições de trabalho miram todas as empresas de delivery por app, como Rappi e Loggi, mas têm como alvo principal o iFood — a maior do ramo no país.
“O iFood tem que ser atacado porque tem o monopólio das entregas no Brasil. As outras plataformas imitam o seu padrão. Ele é o maior e serve de exemplo para os outros aplicativos”, opina Ralf MT, youtuber e entregador do Rio de Janeiro.
Com o intuito de criar um obstáculo contra a inviabilização de concorrentes que a hegemonia da marca vem impondo, em março do ano passado o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) determinou uma “medida preventiva” temporária, proibindo que o iFood seguisse firmando contratos de exclusividade com os restaurantes. Os já assinados, no entanto, seguiram vigentes.
Dos 23 entregadores escolhidos pela empresa para participar de um Fórum realizado em dezembro pelo iFood, cinco deles estarão em Goiânia na paralisação. O encontro, feito a portas fechadas, foi uma reação da empresa à onda de greves prolongadas que aconteceram em ao menos dez cidades no segundo semestre de 2021.
Reivindicações
A carta-compromisso que saiu como resultado do Fórum não contemplou a principal reivindicação da categoria, que é o aumento da taxa mínima por corrida, hoje em R$ 5,31.
No documento, o iFood se compromete com algumas mudanças a serem feitas até março, principalmente relativas à reclamação dos bloqueios de conta que, segundo os entregadores, são feitos de forma arbitrária e sem justificativa.
“A gente está começando a achar que o iFood fez o Fórum para segurar as greves até março. Mas isso não funciona com a gente”, alega Ralf MT, que viajará a Goiânia para apoiar o breque.
Beatriz Ferreira, entregadora goianiense que está há dois anos na plataforma, também esteve no Fórum e não sentiu melhorias no serviço nem no diálogo com a empresa. “É muito difícil ter comunicação com eles”, constata.
A divisão leal de pedidos entre as diferentes modalidades de entregadores; o fim dos desligamentos de conta sem justificativa; o término do agendamento de horário de trabalho e o aumento da taxa mínima por corrida são as principais demandas das mobilizações.
Operador logístico e Nuvem
No iFood, existem dois modelos de cadastro de entregadores. Um é daqueles que se vinculam diretamente à plataforma: são chamados de Nuvem e definem (a princípio) o próprio horário de trabalho. De acordo com o app, eles representam 80% dos trabalhadores ativos.
Outro é o Operador Logístico (OL). Estes têm jornada fixa agendada previamente, e sua relação com o iFood é intermediada por uma empresa. Os entregadores respondem hierarquicamente a um supervisor, chamado de “líder de praça” ou “operador logístico” também.
As empresas operadoras logísticas, que não são do iFood, controlam os cadastros e as senhas da sua frota de entregadores na plataforma, tendo o poder, inclusive, de desativar suas contas.
Durante a paralisação na cidade paulista de Atibaia, em outubro, por exemplo, três grevistas tiveram suas contas suspensas pelo supervisor OL, como represália por participar da mobilização.
O modelo OL garante ao iFood que haja trabalhadores fazendo entregas de forma fixa e sem a opção de negar pedidos, dando conta da demanda mesmo em dias de chuva, por exemplo.
O iFood criou também uma subcategoria de OL. Além dos chamados OLs livres, que circulam em qualquer região da cidade, existem os OLs subpraça ou subárea. Estes ficam limitados a fazer corridas em determinados bairros (normalmente em locais em que há demanda, mas menos preferência por parte dos trabalhadores).
Jornada de trabalho agendada
Mais recentemente, a empresa de app delivery ainda aplicou em 16 cidades brasileiras — como Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE), Recife (PE), Belém (PA), Campinas (SP), Jundiaí (SP) e Goiânia (GO) — o formato de hora agendada mesmo para quem é Nuvem. Nesse caso, o trabalhador define, com antecedência, os turnos da sua jornada.
Ao Brasil de Fato, o iFood informou que essa é “uma iniciativa de transparência que permite que o entregador tenha a opção de circular nos horários com maior número de pedidos”.
Essa dinâmica tem sido criticada pela categoria, que argumenta estar sendo empurrada para um modelo de menor autonomia e sem os direitos de um trabalho formal.
Além disso, entregadores ouvidos pela reportagem alegam que, sabendo com antecedência quantos deles já estão comprometidos a trabalhar a cada turno, o app delivery não sentirá necessidade de oferecer promoções (valores extras temporários ofertados eventualmente).
Tem sido praxe que, como estratégia de desmobilização, o iFood ofereça promoções durante as greves.
De acordo com a empresa, “o planejamento de entregas” tem o objetivo de “trazer mais previsibilidade para a operação e para os entregadores parceiros”. Afirma, ainda, que “não há qualquer penalização caso a pessoa não se logue no horário agendado”.
“O iFood criou a entrega agendada, que é um ‘OL às escondidas’, só que não tem empresa nem líder por trás, e aí fica mais difícil configurar vínculo empregatício”, avalia Ralf MT.
Marcione Araújo, mais conhecido como Ferrugem, está na organização do breque em Goiás. Segundo conta, desde que a Uber Eats anunciou que vai encerrar o serviço de entrega de restaurantes no Brasil, foram abertas duas grandes empresas OL trabalhando com o iFood na capital, com uma frota de cerca de 200 entregadores cada, muitos dos quais como subpraça.
“Desde o fim do ano passado, o iFood prioriza só os OLs. Não estão mais tocando pedidos para quem é Nuvem, mesmo para quem se submeteu ao agendamento. Os ganhos de toda a categoria dos Nuvens aqui, em Goiânia, caiu cerca de 50%”, relata Ferrugem.
“Está ficando cada vez mais difícil trabalhar”, resume Beatriz. “Nós, Nuvem, ficamos o dia todo na rua e não toca. Fazemos seis entregas num dia… toda a demanda vai para subpraça. Nossa principal reivindicação é que o iFood tire isso de subpraça e de agendamento e que as entregas sejam igualmente divididas entre quem é Nuvem e OL. Nossa briga não é com líder OL ou com outros entregadores: é com o iFood”, explica.
A empresa nega que esteja aplicando uma predileção na distribuição dos pedidos: “O fato é que há formatos diferentes de trabalho, de livre escolha, que proporcionam benefícios distintos”.
“Os entregadores que se inscrevem no planejamento, por exemplo, podem receber mais pedidos por estarem planejando a atividade de entrega em horários com regiões com maior número de pedidos. Já os parceiros que não se inscrevem têm a mesma liberdade de planejar as rotas de trabalho, mas recebem pedidos de acordo com a demanda, sem uma maior previsibilidade das rotas”, informou o iFood ao Brasil de Fato.
Questionado sobre os compromissos firmados no Fórum, o app de delivery diz que aumentou “a transparência sobre o motivo de alertas e suspensões temporárias nas mensagens”; iniciou uma “campanha informativa sobre o que pode causar bloqueios”; avançou “na melhor comunicação do Canal de Denúncias para entregadores”; automatizou a taxa de espera no restaurante; reduziu “o prazo de migração de perfil” e melhorou “uma funcionalidade do app do entregador”.
Os breques
Sobre as mobilizações, o iFood respondeu que “respeita o direito de manifestação”. “A empresa esclarece que mantém o diálogo aberto com os entregadores para buscar melhorias para os profissionais e para todo o ecossistema. Assim, serão promovidos encontros de escuta regionais para ouvir as principais demandas da categoria”, afirma.
Os entregadores das duas cidades que vão entrar em greve em Goiás não têm dia definido para voltar ao trabalho. “Vamos segurar até receber uma resposta plausível do iFood”, afirma Ferrugem.
Em Manaus, a ideia inicial é paralisar por 24h, como explica Silvio*, entregador que fez questão de deixar nítido que não é líder e nem integrante de sindicato. “Nos organizamos de forma horizontal”, garante.
Citando o caso cujo vídeo viralizou nas redes sociais, de um entregador que, em Manaus, foi agredido pelo cliente por se recusar a entregar o produto antes do pagamento ser efetuado, Silvio diz que humilhações são recorrentes. “E só se tornam públicas as que são filmadas”.
No caso dessa, houve reação da categoria que, em grupo, fez algumas visitas. Uma ao próprio agressor e outra até a porta do motel cuja família é proprietária, onde aconteceu um buzinaço.
“Precisamos nos organizar como classe”, defende Leonardo*, outro dos organizadores do breque em Manaus. “A única coisa que a gente quer”, sintetiza Silvio, “é trabalhar com dignidade”.
*Nomes foram alterados para preservação das fontes
Fonte: Brasil de Fato | São Paulo (SP)