Por José Alvaro Moisés, publicado no jornal O Estado de São Paulo
Eleito com grande maioria de votos, o presidente Jair Bolsonaro tem a responsabilidade de pacificar a Nação, apesar de seus arroubos autoritários, pois, desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o Brasil está completamente dividido e polarizado política e ideologicamente, o que afeta as relações do governo com a sociedade. A legitimidade eleitoral conquistada nas eleições, porém, não o autoriza a abandonar a obrigação de governar para todos os brasileiros, e não apenas para os seus apoiadores. O próprio presidente assegurou ao País que faria isso ao jurar respeito à Constituição da República.
Em seu primeiro ano de mandato, no entanto, Bolsonaro alimentou muitas dúvidas sobre a racionalidade de suas ações e o compromisso de cumprir a Constituição. Recusando-se a formar uma maioria governativa no Congresso Nacional, como requerido pelo sistema político, não assumiu a liderança do partido que o elegeu nem coordenou as forças que o apoiam. Diante de novo protagonismo do Congresso, optou pela ausência de diálogo com as forças políticas e envolveu-se em seguidos conflitos com o Poder Legislativo, que, não obstante, tem aprovado suas propostas, a exemplo da reforma da Previdência e, agora, o seu veto no caso do orçamento impositivo. Quanto às questões tributária e administrativa, o governo hesita e não define os seus projetos.
Durante 2019, o presidente sustentou uma retórica de confronto com seus críticos e adversários, grosseira em muitos episódios, e ofensiva ao decoro do cargo pelo grau de desrespeito a importantes segmentos da sociedade, como as mulheres, os negros e os indígenas, cujos direitos ameaçou ou tentou retirar em alguns casos. Quis ainda controlar a liberdade de ação da sociedade civil e, adotando uma política ambientalista desastrosa, voltada para desconstruir o que havia sido feito em governos anteriores, atritou-se com chefes de Estado estrangeiros focados na preservação da Amazônia, esvaziando o papel do Brasil nessa área.
A estratégia do presidente se choca com a estabilidade institucional requerida pela doutrina da separação de Poderes e busca o tempo todo desviar a atenção da estagnação econômica, que permanece, apesar de uns poucos sinais de recuperação, e de suas supostas ligações com milicianos. Ademais, hostilizou governadores de oposição com acusações descabidas e desafiou a maioria deles a diminuir impostos sem, contudo, dialogar ou apresentar propostas consistentes a esse respeito. Nem a gravíssima crise de segurança do Ceará fez o presidente desautorizar o desrespeito às leis por policiais militares revoltosos.
Mas mais grave é o seu indisfarçável apoio à manifestação convocada por bolsonaristas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Agredindo jornalistas como Vera Magalhães pelo desmentido disso, como tinha feito com Patrícia Campos Mello, Jair Bolsonaro tenta se livrar da responsabilidade por ações que juristas e políticos consideram que tipificam crime de responsabilidade, mas sabe perfeitamente que manifestações pedindo o fechamento do Parlamento e da Corte Suprema atentam contra a democracia – e, como cumpridor da Constituição, Bolsonaro deveria desautorizá-las.
Trata-se de uma sinalização perigosa de descompromisso com a democracia, que precisa ter resposta firme da sociedade brasileira. A situação abre uma extraordinária janela de oportunidade para que os defensores da democracia representativa mobilizem as suas bases, por meio de seus partidos, associações, sindicatos e grupos religiosos, para reafirmar os valores fundamentais da democracia – a liberdade, a igualdade política e o império da lei -, mas também para debater as distorções das instituições de representação, que causam desconfiança e rejeição popular, especialmente os partidos e o Parlamento.
Nesse sentido, a inconsistência programática dos partidos, a sua falta de democracia interna, o abuso no uso de recursos para campanhas eleitorais, a desconexão entre representados e representantes e, principalmente, o sentimentos de muitos eleitores de não serem relevantes para instituições como o Congresso precisam ser enfrentados, não podem ser deixados apenas como argumentos dos inimigos da democracia.
O desafio é claro. Empresários, formadores de opinião, dirigentes partidários, chefes religiosos, sindicalistas, intelectuais – e, especialmente, os que querem assumir o papel de líderes da Nação – têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas dos bolsonaristas, apoiadas pelo governo, contra a democracia representativa e a liberdade. A melhor defesa do regime é enfrentar suas crises para aperfeiçoá-lo, mobilizar a população e pôr as propostas necessárias de reforma em debate. Os democratas precisam fazer isso antes que seja tarde demais.
José Álvaro Moisés, professor Sênior do Instituto de studos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), é autor do livro “Crises da democracia – o papel do Congresso, dos deputados e dos partidos
Fonte: O Estado de São Paulo