Fruto da manipulação da contabilidade para mascarar o crescente endividamento, a crise nas lojas Americanas S.A, uma das maiores empresas do varejo brasileiro, presente em todo o país com mais de 2 mil fornecedores, tende a ter desdobramentos dramáticos para os trabalhadores e o sistema financeiro. O Dieese analisou os potenciais impactos da crise.
Após a divulgação das inconsistências fiscais, o valor das ações da empresa na Bolsa de Valores desabou e agências de classificação de risco, como Fitch, S&P e Moody’s, rebaixaram as notas de crédito das Americanas – o que ocorreu novamente após o pedido de recuperação judicial da empresa, no dia 19 de janeiro.
A subnotificação contábil da dívida bancária melhorou “artificialmente” os indicadores de endividamento, desempenho e patrimônio das Americanas, garantindo que a empresa tivesse acesso a melhores condições de crédito (em termos de volume de empréstimos concedidos, prazos e juros cobrados) do que ocorreria se a contabilização tivesse sido realizada de maneira correta.
Ponderam os técnicos do Dieese que diante do cenário de recuperação judicial é preciso compreender a extensa cadeia produtiva que envolve as Americanas. “Em especial, é necessário agir de forma rápida e transparente para preservar a atividade econômica e proteger os mais de 44 mil funcionários do grupo e os empregos indiretos, que, segundo estimativas, juntos representam mais de 100 mil trabalhadores”. Destacamos a seguir alguns trechos do estudo:
Estrutura da empresa
O grupo Americanas S.A. atua em diversos segmentos, com foco no comércio varejista, e combina atividades físicas, como lojas de ruas e de shoppings, e armazéns de e-commerce e plataformas digitais. Além da marca Americanas, que engloba as lojas próprias, segundo dados do 3º trimestre de 2022, o grupo detém negócios como:
• Hortifruti Natural da Terra, maior rede varejista especializada em frutas, legumes e verduras do país, com 79 lojas em quatro estados da região Sudeste (RJ, SP, MG e ES);
• Vem Conveniência, no ramo de franquias, criada a partir de uma joint-venture entre a Vibra Energia S.A. (antiga BR Distribuidora) e a Americanas S.A., cada uma com participação de 50%. Possuem atualmente 1.300 lojas de conveniência, das quais 60 lojas são da marca Local, operada pelas Americanas, e 1.240 lojas estão em postos de combustíveis, com a marca BR Mania.
• Grupo Uni.co, adquirido pelas Americanas em 2021, atua no varejo especializado em franquias e é dono das marcas Puket, Imaginarium, MinD e Love Brands, com 419 lojas.
• Ame Digital, plataforma financeira da Americanas S.A., com cerca de 30,5 milhões de contas abertas, que, em outubro de 2022, foi autorizada pelo Banco Central a operar como instituição de pagamentos.
Segundo a divulgação da empresa, esses negócios concentraram-se em 3.601 lojas de diferentes formatos, praticamente metade delas composta por lojas próprias das Americanas, no formato tradicional e express (1.800 lojas ou 49,9%). Vale destacar também as franquias, como as do Grupo Uni.co e da BR Mania, que, juntas, representam 46% do total
Quase metade das lojas próprias naquele ano (1.937) estava no Sudeste (49,6%). As demais estavam distribuídas regionalmente da seguinte forma: Nordeste, 22,6%; Sul, 10,4%; Norte, 9,0%, e Centro-Oeste, 8,4%. A empresa tem presença, com lojas próprias, em todos os estados brasileiros e em 938 municípios.
Considerando as principais atividades, em 2021, a empresa2 tinha 44.481 funcionários em todo o país. A maior parte estava empregada na região Sudeste (61,2%), e, em seguida, no Nordeste (19,9%), Sul (7,6%), Centro-Oeste (5,7%) e Norte (5,6%).
Maioria de mulheres
Em relação ao perfil dos trabalhadores empregados nas principais operações das Americanas, é importante destacar que mais da metade eram mulheres: 53,6%, ou quase 24 mil trabalhadoras. Desse total, 1.230 foram mães em 2021, ano em que tiraram licença maternidade, segundo Relatório Anual da empresa.
Também é importante destacar que a força de trabalho possui um perfil majoritariamente jovem: 75,9% dos empregados possuíam menos de 30 anos. Em relação à cor/raça, 42,1% dos funcionários foram declarados como pardos e 16,9%, como pretos.
Com relação ao tipo de vínculo, a Americanas S.A. declarou que 84,7% do corpo de funcionários era considerado permanente e outros 15,3% estavam com vínculos temporários. Vale destacar que a presença de temporários era bem maior entre as mulheres (17,8%), enquanto entre os homens ficava em 12,3%.
Impactos no sistema financeiro
Na lista de credores, enviada pela empresa no decorrer do processo de recuperação judicial, estão alguns dos mais importantes e atuantes bancos do país. Vale destacar: Deutsche Bank: R$ 5,2 bilhões; Bradesco: R$ 4,5 bilhões; Santander (Brasil): R$ 3,6 bilhões; BTG Pactual: R$ 3,5 bilhões; Votorantim: R$ 3,2 bilhões; Itaú Unibanco: R$ 2,7 bilhões; Safra: R$ 2,5 bilhões; Banco do Brasil: R$ 1,3 bilhão; Caixa Econômica Federal: R$ 501 milhões.
O primeiro impacto potencial é nos resultados financeiros dos bancos, na medida em que o atraso no pagamento ou mesmo o não recebimento de partes da dívida das Americanas fará com que as instituições financeiras elevem os níveis de provisão para devedores duvidosos (PDD), o que afetará de forma negativa o lucro.
Segundo relatório da XP Investimentos, esse impacto negativo pode ser da ordem de 20 a 30% no caso dos bancos mais expostos, como BTG, Santander e Bradesco e, de cerca de 10%, nos casos de Itaú e Banco do Brasil. O relatório aponta que os níveis de PDD dos cinco grandes bancos de capital aberto podem chegar a cerca de R$ 8 bilhões.
Cenários semelhantes foram observados no setor bancário brasileiro em 2016, na esteira da quebra de empresas em decorrência da operação Lava Jato e, em 2020, em função das incertezas econômicas decorrentes da pandemia de covid-19. Esses eventos alertam para o risco de as instituições financeiras buscarem recompor a lucratividade com base na redução de despesas administrativas e de pessoal, o que pode significar intensificação do processo de fechamento de agências bancárias e nova onda de
demissões de bancários.
Crédito escasso
Além disto, é de se esperar, como potencial efeito negativo do caso Americanas, um endurecimento das condições gerais de crédito no país, que já está restrito e escasso. A Pesquisa Febraban de Economia Bancária e Expectativas, realizada em dezembro de 2022, antes de o caso Americanas vir à tona, revela que a expectativa dos bancos era de que a variação do crédito cairia de 14,8%, em 2022, para 8,2%, em 2023, influenciada pelo progressivo aumento das taxas básicas de juros e a estagnação da economia.
O Dieese alerta, ainda, que as instituições financeiras podem ser afetadas indiretamente, uma vez que, na relação de credores, há o envolvimento de diversas cadeias produtivas, especialmente ligadas aos setores de alimentos, eletrônicos e tecnologia que, de certa forma, também são agentes que operam no sistema financeiro.
Como conclusão, o órgão que assessora o movimento sindical brasileiro salienta que “é possível observar que há extensa rede de credores e fornecedores em torno das atividades das Americanas, milhares de empresas e um contingente estimado em mais de 100 mil trabalhadores empregados, que podem ser impactados ao longo do processo de recuperação judicial. É urgente que sejam articuladas ações para apuração das responsabilidades, estabelecimento de total transparência e diálogo tripartite no sentido de garantir a manutenção dos postos de trabalho e dos direitos trabalhistas”.
Fonte: CTB