A Justiça brasileira tem constantemente negado demandas de trabalhadores de aplicativos que reivindicam vínculo empregatício com empresas como Uber e iFood, mas uma decisão recente da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) abriu um precedente inédito na corte a favor desses profissionais: o colegiado reconheceu a relação de emprego entre um motorista e a Uber.
A turma já havia formado maioria pelo reconhecimento do vínculo, mas o julgamento estava paralisado desde dezembro de 2020 por pedido de vista do ministro Alexandre Agra Belmonte. Na decisão, do último dia 6 de abril, os magistrados concluíram que estavam presentes os elementos necessários para enquadrar o motorista como empregado da empresa, incluindo a subordinação.
Segundo o relator do caso, ministro Mauricio Godinho Delgado, o motorista de aplicativo “é fiscalizado permanentemente pelo algoritmo”. “Admiramos o serviço, mas ele não escapa — mas sofistica — a subordinação”, afirmou ele. Em nota enviada à Conjur, a Uber anunciou que vai recorrer da decisão, que, em sua visão, “representa um entendimento isolado e contrário” ao de outros casos já julgados pelos tribunais do Brasil.
A existência ou não de vínculo empregatício na relação entre trabalhadores de aplicativos e empresas de tecnologia não é consenso nem mesmo entre especialistas em Direito do Trabalho.
De um lado, há os que dizem que os motoristas e entregadores que trabalham por meio de aplicativos são empregados das empresas. De outro, os que consideram que eles são autônomos.
Existem divergências quanto ao assunto dentro da própria instância máxima da esfera trabalhista. Em disputas anteriores entre motoristas e a Uber, por exemplo, os ministros da 4ª e da 5ª Turmas já entenderam que não existe subordinação do trabalhador à empresa. Eles consideram que o fato de o motorista ter a opção de ficar offline do aplicativo, sem limite de tempo, indica que há uma flexibilidade para estabelecer seus próprios horários de trabalho, o número de clientes que vai atender e o local onde atuará.
Para o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luiz Antonio Colussi, a falta de uma legislação específica que regule a matéria no país impede que tanto juízes e desembargadores quanto ministros cheguem a um entendimento comum sobre a questão.
Segundo ele, que é juiz do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul), há atualmente mais de 20 projetos de lei no Parlamento que discutem a necessidade de o Congresso regulamentar a relação entre trabalhadores e plataformas digitais no país, um dos principais alvos da discussão eleitoral sobre o futuro do mercado de trabalho.
“É importante que o nosso país e a sociedade percebam o movimento que está acontecendo em outros países, como Estados Unidos, Espanha e Inglaterra, que vêm conferindo proteção aos trabalhadores das plataformas digitais. O Brasil não está fora dessa realidade, precisamos debater para chegar a um entendimento”, diz Colussi.
Números expressivos
Atualmente, o reconhecimento de vínculo de emprego entre os brasileiros que prestam serviços como motoristas e entregadores por aplicativos e as empresas de tecnologia só é possível por meio de uma ação na Justiça.
E esses pedidos vêm crescendo nos últimos anos: de 2020 para 2021, os processos distribuídos no país sobre esse assunto saltaram de 1.716 para 4.793 — um crescimento de 179,3 % —, segundo levantamento feito pela empresa de jurimetria Data Lawyer Insights a pedido da ConJur.
Nos anos anteriores, as ações já vinham crescendo, com 227 em 2017, 165 em 2018 e 549 em 2019, mas a explosão ocorreu durante os dois últimos anos, durante a crise sanitária causada pela Covid-19.
Outro estudo recente da Data Lawyer Insights, desta vez incluindo não apenas pedidos de vínculo de emprego, mas também demandas por verbas rescisórias, anotação na CTPS e indenização, indica que a maioria dos processos está pendente (63,53%) ou foi considerada improcedente (17,20%). Os demais foram acolhidos pela Justiça como “parcialmente procedentes” (10,64%) ou acabaram resultando em acordos (7,08%). Apenas 1,29% deles terminaram em ganho da ação.
De acordo com advogados trabalhistas consultados pela ConJur, a maior parte das ações que demandam reconhecimento de vínculo empregatício desses profissionais tramita na primeira ou segunda instância, mas centenas delas já chegaram ao TST: desde a reforma trabalhista (2018) até o dia 16 de maio deste ano, 576 casos alcançaram a corte com o assunto “reconhecimento de relação de emprego”, segundo levantamento do tribunal feito a pedido da ConJur.
A maior parte deles pedia vínculo de emprego com as empresas 99 (252) e Uber (224). Do total de 576, 340 já foram julgados pelos ministros, mas apenas seis deles foram providos ou parcialmente providos.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de brasileiros que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias cresceu 979,8% entre 2016 e 2021: saltou de 30 mil para 278 mil. O Ipea calcula que, no final do ano passado, aproximadamente 1,5 milhão de trabalhadores tinham como fonte de renda principal o transporte de passageiros ou de mercadorias no país.
Afinal, há vínculo empregatício?
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece que cinco elementos jurídicos devem ser levados em conta para determinar se existe vínculo de emprego entre um profissional e uma empresa: prestação de trabalho por pessoa humana; pessoalidade; onerosidade; não eventualidade; e subordinação.
Para o professor e coordenador trabalhista da Editora Mizuno, Ricardo Calcini, os requisitos de pessoalidade e habitualidade estão presentes na maioria dos casos de trabalhadores de aplicativo, uma vez que o dono dos veículos utilizados para fazer entregas ou transportar passageiros costuma ser o próprio prestador do serviço, e esses profissionais geralmente trabalham com recorrência — diária ou semanal, por exemplo.
“A pessoalidade estaria afastada somente nos casos em que a pessoa cadastrada no aplicativo não é a mesma que conduz o carro ou moto, porque aí não há a identificação do prestador com o proprietário ou com quem aluga o veículo”, explica ele, que também é colunista na Conjur.
A onerosidade também consta na relação, segundo o advogado, já que o motorista ou entregador recebe um percentual do serviço que presta. Por outro lado, explica ele, a subordinação é o motivo principal das divergências jurisprudenciais.
Embora a decisão da 3ª Turma do TST tenha reconhecido que o motorista da Uber estava subordinado ao algoritmo, Calcini considera que essa relação é “atenuada” à medida em que motoristas e entregadores de aplicativos “praticamente assumem todo o risco do empreendimento”. “Sabemos que, se acontecer qualquer coisa na dinâmica da prestação de serviço, ele acaba tendo de suportar todo esse gravame sozinho”.
Outro advogado trabalhista, Cláudio Lima Filho, também vê dificuldade em demonstrar que existe subordinação entre esses profissionais e as empresas de tecnologia.
“Tecnicamente falando, o motorista ou entregador pode se recusar a trabalhar? Pode. Ele pode trabalhar a qualquer hora? Pode. Então, se eu tenho liberdade para trabalhar ou não, isso não é um emprego”, afirma. “Se o empregador não tem controle sobre o tempo em que a pessoa está à sua disposição, não existe vínculo empregatício”.
Já para Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, sediado em Campinas (SP), e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o erro técnico está justamente em negar vínculo empregatício a esses trabalhadores.
“Muitas dessas decisões que negam relação de emprego usam como argumento que os trabalhadores não são punidos caso não trabalhem, e que eles têm uma liberdade para escolher a hora em que vão trabalhar. Mas nada disso está previsto como requisito para definir vínculo empregatício como consta nos artigos 2º e 3º da CLT, que não foram revogados pela reforma trabalhista e são completamente atuais, porque a lei foi revisada em 2017”, avalia o desembargador.
Os artigos 2º e 3º da CLT, citados pelo magistrado, referem-se à prestação pessoal de serviços a empregador, “sob a dependência deste e mediante salário”. Para Calcini, ao negar vínculo de emprego a esses profissionais, as instituições jurídicas não estão “fazendo valer” a legislação trabalhista: “Isso é um ato de ilegalidade”.
Vanessa Patriota, vice-coordenadora da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret), do Ministério Público do Trabalho (MPT), também considera que motoristas e entregadores podem, sim, ser considerados subordinados, por um motivo central: embora não sejam diretamente controlados por supervisor ou dono das empresas, eles têm sua autonomia mitigada pelo “passo a passo e todo o procedimento operacional definido previamente pelas plataformas”.
“No caso do iFood, por exemplo, o valor da tarifa é determinado pela empresa sem qualquer consulta aos entregadores, e a gente sabe que autônomo é aquele que diz o quanto vale o seu trabalho”, avalia Patriota, que também é procuradora do Ministério Público de Pernambuco. “Com a baixa remuneração, a empresa também consegue, sem qualquer ordem direta, manter o empregado à disposição por muitas horas ao longo do dia, então a precificação controla o trabalho sem que os trabalhadores percebam”.
A procuradora considera que os direitos trabalhistas deveriam ser assegurados à categoria. Ela destaca que o parágrafo único do artigo 6º da CLT define que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
“A gente não pode olhar para o trabalho no século 21 com um olhar do século 20. São novas formas de controle, mas que já estão previstas na CLT”, defende ela.
Outro lado
Procuradas pela ConJur, as empresas de tecnologia dizem discordar do entendimento de que há vínculo de emprego na relação com esses profissionais. “Os parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo”, disse a Uber, em nota.
Segundo a plataforma, já são mais de duas mil decisões de tribunais regionais e varas do Trabalho no Brasil reconhecendo não haver relação de emprego com a empresa.
O aplicativo de entregas Rappi, por sua vez, informou que os entregadores que atuam na plataforma “são independentes, com liberdade para se conectarem na plataforma quando e onde quiserem, bem como para realizar entregas por outros aplicativos”.
O iFood argumenta que, do momento em que a compra é feita pelo usuário final até a hora em que o pedido chega à sua residência, “não existe nenhuma pessoalidade com a determinação do entregador”.
A empresa alega ainda que “defende a construção de uma legislação que ampare os entregadores e motoristas de aplicativo no âmbito previdenciário”. “O iFood defende, inclusive, que as empresas assumam a maior parte da contribuição, tornando, assim, mais acessível o ingresso à Previdência para o trabalhador de plataforma digital”.
Procurados, o aplicativo de entregas Loggi preferiu não se posicionar e a empresa de transporte individual 99 não havia respondido até a conclusão desta reportagem.
Nova lei
Em abril, o Ministério do Trabalho anunciou que pretende lançar ainda neste ano uma norma para regulamentar a prestação de serviço de profissionais dessas plataformas. A ideia é adotar regras mais flexíveis do que as aplicadas a um empregado formal de carteira assinada, mas que viabilizem a regulamentação da relação entre o entregador e as empresas de tecnologia que controlam esses serviços.
O presidente da Anamatra diz que a entidade espera que a proposta do governo “assegure proteção para os trabalhadores e a segurança jurídica necessária”.
“O ideal seria realmente o reconhecimento do vínculo empregatício e a ampla proteção desses trabalhadores, a exemplo de todos os trabalhadores”, defende Luiz Antonio Colussi.
“E esperamos que, quando a proposta for apresentada, possamos olhar o contexto de todos esses projetos que já estão em tramitação na Câmara e no Senado, para buscar um entendimento comum sobre essa matéria e a proteção que esses trabalhadores necessitam do poder público”, diz.
Fonte: Consultor Jurídico