Cifra de pessoas resgatadas em 2017 não chega nem à metade do contingente de 2016 Responsável do setor que criticou situação financeira foi exonerado nesta semana
Segundo o jornal El País, número de trabalhadores em condições análogas à escravidão resgatados no Brasil este ano despencou. Mas não há motivos para comemorar. A queda não é consequência do abandono da prática centenária de exploração ilegal. Apenas não há dinheiro para fiscalizar, segundo funcionários e entidades que atuam na área. Em 2016 foram resgatadas 885 pessoas. Até setembro deste ano foram apenas 167 libertados. A informação foi repassada à reportagem por um funcionário de alto escalão do Ministério do Trabalho, e confirmado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Os números da Comissão Pastoral da Terra divergem um pouco, mas são igualmente ruins: 292 resgatados.
De 2013 até 2016 o número de resgatados já vinha caindo ano a ano (2.808, 1.752, 1.010 e 885), segundo dados de uma nota técnica do Instituto de Estudos Econômicos (Inesc) divulgada este mês. Mas o declínio acentuado de 2017 se deveu aos cortes no orçamento, segundo especialistas. De acordo com a Lei Orçamentária Anual, 3,2 milhões de reais haviam sido previamente alocados para as ações de fiscalização em 2017. Mas devido ao contingenciamento apresentado pelo Governo de Michel Temer em função do ajuste fiscal, o valor foi reduzido para 1,6 milhão de reais. A maior parte, 1,4 milhão, já havia sido gasta até setembro, e o dinheiro restante já estaria comprometido, diz o documento do Inesc.
Em agosto o Ministério Público do Trabalho chegou a ajuizar uma ação contra a União para garantir o financiamento das ações de combate ao trabalho escravo. Em nota divulgada à época o Ministério do Trabalho afirmou que “o combate ao trabalho escravo é uma ação prioritária e não será paralisada (…) Temos remanejado recursos e buscado, junto ao Planejamento, alternativas para que a área de fiscalização continue atuando”.
Sem dinheiro, cai também o número de estabelecimentos fiscalizados: 207 em 2016, ante 84 até 7 de outubro deste ano. O volume mensal de operações de inspeção do trabalho também diminuiu 58% em 2017 com relação ao ano anterior – foram 115 operações no ano passado. O frei Xavier Plassat, coordenador da campanha da Pastoral da Terra contra o trabalho escravo, afirma que os cortes orçamentários atingem principalmente as superintendências regionais, presentes em todos os Estados do país. Ao lado de quatro equipes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, cabe a elas receber denúncias e fiscalizar as condições de trabalho in loco.
“Sem dinheiro, os fiscais ficam plantados, sem poder arcar com diárias e gastos de combustível”, afirma Plassat. Plassat aponta uma inversão no modelo de combate ao trabalho escravo no país, que tem como consequência uma redução de sua efetividade. “Historicamente, cerca de dois terços das fiscalizações eram feitas pelas superintendências regionais, e o restante pelo Grupo Móvel. Mas em 2017 isso se alterou”, afirma, ressaltando que apesar da determinação dos servidores que atuam nas equipes móveis elas são “reduzidas”. O frei afirma que há “uma pressão muito forte dos grupos econômicos sobre o Ministério do Trabalho na busca por reduzir a efetividade dos mecanismos de combate ao trabalho escravo”.
A bancada ruralista do Congresso, por exemplo, tenta emplacar há alguns anos projetos que flexibilizam o entendimento de “condições análogas à escravidão”. Em 2015 a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento Desenvolvimento Rural da Câmara deu parecer favorável a uma lei que retira os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” do artigo que define trabalho escravo no código penal.
Outro motivo para a queda no número de escravos libertados, de acordo com Plassat, seria a “mudança constante” nas táticas dos empregadores para burlar a fiscalização. “Eles usam ‘contratos’ cada vez mais curtos, de três semanas, por exemplo, o que reduz o tempo hábil para que o trabalhador denuncie e o caso seja apurado”, afirma.
“Hoje, com o atual cenário, a gente não tem condições de fazer nenhuma operação”
Apesar do empenho dos funcionários que atuam no combate à escravidão moderna no Brasil, estima-se que o déficit de pessoal na Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho (Detrae) chegue a 30%, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
Exoneração e bancada ruralista
Até mesmo a relação de toma lá da cá entre Governo e Congresso cobra um preço da luta contra o trabalho escravo. Na terça-feira foi publicado no Diário Oficial da União a exoneração de André Roston, então chefe da Detrae. De acordo com a coluna Painel do jornal Folha de S.Paulo, seu cargo virou moeda de troca com parlamentares após ele despertar a ira da base aliada ao criticar os cortes de gasto no departamento. Em uma audiência pública no Senado Federal, Roston afirmou que a fiscalização contra o trabalho escravo encontrava-se parada devido à falta de verbas: “Hoje, com o atual cenário, a gente não tem condições de fazer nenhuma operação”.
O Ministério Público do Trabalho divulgou nota criticando a demissão do servidor. “Estamos convictos de que a exoneração compromete a erradicação dessa violação aos direitos humanos e revela a inexistência de vontade política e o descompromisso do atual Governo com o enfrentamento do problema”. Já o Ministério do Trabalho respondeu em nota, afirmando que “funções de chefia são transitórias, e o combate ao trabalho escravo não depende de uma pessoa”. Ainda de acordo com o texto, “muitas vezes, substituições de chefias ocorrem para aprimorar aquilo que vem se realizando (…) O combate ao trabalho escravo e infantil é uma das prioridades do Ministério”.
Mas não é apenas do ponto de vista orçamentário que o combate ao trabalho escravo se encontra sitiado. O cadastro de empregadores que utilizam mão de obra escrava, conhecido como “lista suja”, reconhecido pela ONU e pela Organização Internacional do Trabalho como uma boa prática na área, chegou a ser suspenso no final de 2014. Em 2016 a hoje presidente do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia determinou a publicação da relação com os nomes dos senhores de escravos modernos, mas o Governo de Michel Temer só voltou a publicá-la em março, após embate na Justiça. E mesmo assim, de acordo com o blogueiro Leonardo Sakamoto, que atua na ONG Repórter Brasil, que monitora a questão, “de forma incompleta”. Os incluídos na lista, em teoria, deveriam ter negado crédito, empréstimos e contratos com bancos públicos, como o BNDES e o Banco do Brasil.