Por Crisley Santana (Jornal da USP)
Missão Artística Francesa foi como ficou conhecida a vinda de artistas franceses para o Brasil no século XIX com o objetivo de desenvolver a formação acadêmica na área. Entre os que aqui desembarcaram, estava Jean-Baptiste Debret (1768-1848), importante pintor que retratou as várias faces do Brasil pré e pós-independência.
Entre as litogravuras produzidas durante os 15 anos em que Debret esteve no País, estão diversos retratos dos povos nativos. Discutir o que há por trás dessas pinturas é o objetivo da dissertação O pitoresco e o sublime: os “indiens de carton-pâte” de Debret em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, produzida por Fabiane Bicalho no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) da USP.
No estudo, Fabiane analisa as 48 litogravuras que fazem parte do tomo I da obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834), destinado às imagens sobre nativos brasileiros.
A análise está baseada nos conceitos de pitoresco e sublime, que segundo a autora foram usados pelo pintor para construir as representações. Enquanto o primeiro termo está baseado na busca por uma natureza perdida após a Revolução Industrial, o segundo é uma categoria estética que busca transcender o que é considerado belo, causando emoção e impacto.
“O pitoresco é como forma artística de você conseguir conciliar todas essas novidades brasileiras, essa paisagem. Isso permite ao pintor conjugar vários elementos de uma natureza distinta num mesmo lugar. Já o sublime traz essa coisa que nos toca, nos dá medo, nos impacta”, afirma Fabiane.
Misturadas a esses conceitos, o pintor usou características da pintura neoclássica, da qual sua formação teve grande influência, para retratar os nativos de maneira idealizada, indica a dissertação.
“O indígena neoclássico é alguém forte, com algumas posturas de figuras ícones da história da arte, como o Leônidas de Jacques-Louis David (1748-1825). O nosso Camacã, retratado por Debret, tem essa postura de Leônidas com sua flecha. É algo para mostrar os nativos como pessoas que estão se civilizando nos moldes europeus”, diz Fabiane, se referindo a litogravuras como Hiiema Mongoyo: Homem Camacã Mongoyo.
Selvagens e civilizados
Nas litogravuras analisadas pela pesquisadora é possível perceber uma grande busca do pintor por demonstrar não só os nativos brasileiros, mas todo o Brasil, como território capaz de se tornar o que a Europa entendia por civilização naquele período.
“Durante toda a obra ele [Debret] usa uma dupla linguagem, ‘os índios selvagens’ e ‘civilizados’, então há esse binarismo. Normalmente o indígena dito selvagem está colocado dentro da natureza, no interior brasileiro, enquanto o ‘civilizado’ é aquele que está vestido e que usa utensílios próprios da cultura europeia.”
Fabiane destaca que esse tipo de representação dos nativos também indica uma hierarquia, sendo aquele com hábitos europeus considerado superior. “O chamado ‘índio selvagem’ [na obra] tem uma oca muito simples, até chegar àquele que tem uma habitação parecida com a do colono, com janelas e portas, que seria o ‘civilizado’”, descreve.
Mesmo com o olhar eurocêntrico sobre outros povos, típico do período colonial, a autora interpreta algumas litogravuras de Debret como uma forma de demonstrar incômodos do pintor com a realidade brasileira. Imagens sobre os nativos indicam essa ideia, segundo a pesquisadora, quando o pintor registra crianças e mulheres indígenas sendo aprisionadas, como na litogravura Soldados índios da província de Curitiba, escoltando índios prisioneiros.
O sentimento pode ser interpretado também no tomo II da obra, no qual estão reunidas as litogravuras de Debret sobre os negros escravizados.
“Quando você representa um escravizado sendo açoitado, mesmo dentro de uma obra de arte que tem visão estética, aquilo de uma certa forma tem que incomodar. Se não o incomodasse, Debret não teria colocado o escravizado praticamente nu sendo açoitado”, disse Fabiane sobre a litogravura Execução de castigo para fuga.
A pesquisadora e a pesquisa
Fabiane Bicalho é formada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pesquisadora da arte brasileira do século XIX. Sua dissertação de mestrado foi feita, além da obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, especialmente com uso de arquivos digitalizados por bibliotecas francesas.
“Pude achar várias coisas sobre o Debret, inclusive as litogravuras que estão digitalizadas. Infelizmente, a pandemia não deixou que eu fosse até as originais lá no Museu Castro Maia, onde elas estão no Rio de Janeiro”, comentou.
A pesquisadora também buscou conhecer mais sobre quem foi o pintor que participou da Revolução Francesa e retratou Napoleão Bonaparte (1769-1821). “Eu tinha que conhecer o Debret, o que ele pensava, a formação artística e humana. Ele viveu no meio da Revolução Francesa, foi pintor de Napoleão, foi discípulo de Jacques-Louis David, primeiro grande propagandista de um político como Bonaparte. Tudo isso tem que fazer parte da pesquisa.”
A dissertação será defendida, isto é, apresentada a uma banca avaliadora, no primeiro semestre de 2022.
Esta matéria faz parte da série Pesquisas em Andamento, desenvolvida pelo Ciclo22, sobre teses e dissertações da USP que serão defendidas por seus pesquisadores.
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