Começo esse artigo relembrando algumas cenas recentes, capazes de compor um mosaico assustador, pelo tanto que revelam acerca de quem somos como sociedade.
Cena 1: o presidente da República sorri enquanto divide a sua recente descoberta: quem está imunizado também pode contrair covid-19 e contaminar outras pessoas. O sorriso se alarga um pouco mais no momento em que ele diz “e pode até morrer”. Ele não fala que a vacina diminui os efeitos da doença sobre o organismo humano e a capacidade de disseminação do vírus, nem aconselha as pessoas a usarem máscaras ou buscarem imunização. Nem mesmo diante da realidade da nova cepa Ômicron. Nem mesmo sabendo que já temos mais de 615 mil mortos e 22 milhões de pessoas infectadas.
Cena 2: a primeira-dama dá pulos de alegria ao saber que André Mendonça, indicado pelo presidente com o epiteto de “terrivelmente evangélico”, foi aprovado pelo Senado, para ser ministro do STF. Na sequência, reúne-se em círculo com outras pessoas: elas rezam.
Cena 3: André Mendonça transita por sua sabatina no Senado. Basicamente, defende-se de tudo o que até agora identifica sua atuação. Vendo-o, recordo quando, em um dos piores momentos da pandemia, ele defendeu a abertura dos templos, com o argumento de que “os verdadeiros cristãos estão dispostos a morrer para garantir a liberdade de culto”. Sua indicação é aprovada por 45 votos. Precisava apenas de 41.
Cena 4: nove pessoas são mortas com tiros de fuzil, na cabeça e no tórax, em uma ação da polícia militar. Segundo o site O Globo, as vítimas são Kauã Brenner Gonçalves Miranda, 17 anos, Rafael Menezes Alves, 28 anos; Carlos Eduardo Curado De Almeida, 31 anos, Jhonata Klando Pacheco Sodré, 28 anos; Élio da Silva Araújo, 52 anos; Ítalo George Barbosa de Souza Gouvêa Rossi, 33 anos; David Wilson Oliveira Antunes, 23 anos; Douglas Vinícius Medeiros De Souza, 27 anos; Igor da Costa Coutinho, 24 anos; cinco deles sem registro policial. Todos irmãos, filhos, amigos, afetos. Em outra ação policial no Jacarezinho, há alguns meses, foram 28 mortes. Em resposta àquela chacina, o vice-presidente afirmou: “era tudo bandido”. O presidente publicou no twitter, no dia 9 de maio: “ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo. É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!”
Cena 5: um homem negro é algemado à moto dirigida por um policial. Ele precisa correr para acompanhar o veículo. Não há notícia de indignação popular.
Cena 6: o grupo de trabalho encomendado pelo governo apresenta sua nova proposta para alteração da legislação trabalhista. É profunda: inclui alterações na Constituição, na CLT e na legislação previdenciária. Segue a linha da “reforma” trabalhista, cujos efeitos nocivos têm sido admitidos até por quem a defendeu em 2017.
Essas cenas têm em comum violência e omissão. Ambas condições estruturais de nossas relações sociais. Condições que são reforçadas cada vez que se reproduz o discurso que naturaliza a atuação estatal em busca da lei e da ordem ou se utiliza a fé para justificar ou viabilizar opressão. Esse reforço ocorre, inclusive, quando identifica-se a violência a apenas um sujeito, que efetivamente tem atuado performaticamente, de modo a gerar asco e medo. O problema é que a fulanização, nesse caso, induz à falsa expectativa de que a eleição presidencial de 2022 poderia nos salvar.
Esse raciocínio é fantasioso. A eleição não nos salvará de nós mesmos.
Afinal, são muitos os agentes a reproduzir violência. Quem promove chacinas, arrasta um ser humano algemado a uma moto, não cumpre direitos trabalhistas, aprova um ministro negacionista, permite a manutenção de um governo que insistentemente desafia a ordem jurídica; quem propõe, vota, aprova ou considera constitucionais legislações que desamparam e, no limite, provocam o adoecimento e a morte de tantas pessoas, não o faz porque votou em um determinado sujeito ou está farto de outro. Reproduz uma ordem de valores, dentro da qual se sente mais seguro. Uma ordem que se mantém com troca de favores, com omissão em discutir publicamente a dominação de classe, raça e gênero, com orçamentos secretos ou aparelhamento das instituições. Quem assim atua, acredita que categorias como bandido ou vagabundo são a essência de seres que com ele não se confundem. Seres cujo desemprego, a dor, a fome, não lhe atingem.
Sob essa lógica, os direitos trabalhistas também são compreendidos como se interessassem apenas a quem está em uma relação de emprego, como se fossem alguma espécie de benefício, como se não fizessem diferença para toda a sociedade. Por isso, é possível encontrar quem, mesmo defendendo direitos humanos ou criticando posições discriminatórias, advoga em favor da punição de trabalhadoras e trabalhadores que porventura não estejam imunizados. O prisma invertido, que naturaliza a percepção de quem vive do trabalho como alguém cuja dignidade e cidadania pode ser sacrificada é o não-dito que identifica todas as cenas antes referidas.
O grupo que está propondo mais alterações para a legislação trabalhista é formado por alguns sujeitos que atuaram para a aprovação da Lei 13.467. O relatório tem 262 páginas e não simplifica, inclusive cria novos incidentes, como o de “formação de grupo econômico”. As propostas, a exemplo do que ocorreu em 2017, fragilizam ou suprimem direitos e garantias processuais, sob o pressuposto (historicamente falso, mas sempre reproduzido) de que o sacrifício de direitos sociais é a grande saída para a crise econômica. O grupo é formado por 29 homens e 3 mulheres. Isso já diz muito acerca da ideologia que perpassa essa iniciativa.
O aprofundamento da precarização da legislação social já tem como efeito, hoje, a insegurança alimentar de mais de 19,1 milhões de pessoas. Aliás, o uso desse eufemismo (insegurança alimentar) para falar de pessoas que estão vivendo com fome, também é revelador. Eis o que o desmanche da legislação social tem produzido e o que essa proposta, se acolhida pelo Parlamento, poderá aprofundar. Nesse caso, a violência, embora em um primeiro momento seja simbólica, pois a simples leitura das propostas já é suficiente para causar sofrimento, não é inferior àquela física, endereçada pelo Estado às pessoas pobres e negras deste país, bem revelada em algumas das cenas antes reproduzidas. E seu resultado é o aumento da violência física representada pela imposição de vulnerabilidade extrema, exigindo que a maioria das brasileiras e brasileiros lutem cotidianamente para manter uma sobrevivência precária. Ao serem obrigadas a isso, essas pessoas acabam sendo concretamente impedidas de atuar politicamente.
A visão do outro como alguém diferente, que pode suportar flagelos indesejáveis, pode sentir fome ou frio, trabalhar no domingo ou 12h em pé e sem intervalo, diz mais sobre as cenas antes descritas, do que o discurso distópico de um representante perverso e irracional. É claro que esse discurso é profundamente violento, na medida em que dá corpo a um sentimento que é de certo modo compartilhado e reforçado por práticas de desmanche de direitos. A questão é que o problema a ser enfrentado não é o de eliminar ou retirar da cena política quem representa essa explicitação da violência estatal. É bem maior do que isso. A violência é estrutural e sem alterar as estruturas de poder não será minimizada.
O nosso primeiro desafio, portanto, é o de entender esse projeto político, no qual a violência é utilizada para disseminar medo e desalento, dois afetos que fragilizam, facilitando práticas de espoliação e dominação. Minha proposta é que, reconhecendo isso, formemos outro grupo de estudos: o G.A.E.T – Grupo de pessoas Afetadas pelo Enfurecimento contra Trabalhadoras e trabalhadores. Reconhecendo-nos na condição de quem vive do trabalho, comecemos a estudar e praticar formas de enfrentamento dessa violência, antes que seja tarde demais. Isso não elimina a importância do voto. Ao contrário, talvez a tarefa primeira deva ser justamente a de exigir o compromisso de candidatas e candidatos, com a revogação dessas legislações destrutivas e com a alteração dessas práticas históricas de violência contra a classe trabalhadora.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.