São muitos os artigos veiculados na imprensa que criticam veementemente os direitos trabalhistas. De modo geral são análises e opiniões procedentes de setores elitistas ou de pessoas que não dependem de tais direitos para viver. Em sua grande maioria acusam a CLT de 1943 de antiga e ultrapassada e defendem que novas formas de trabalho demandariam nova (e mais modesta) legislação ou a total liberdade do empregador em dispensar qualquer arcabouço legal para contratar como quiser. É um argumento cínico e amplamente refutável, mas que ainda tenta relativizar a importância dos direitos trabalhistas diluindo-os na história.
Existem também aqueles que criticam a forma como a CLT foi criada, no contexto do Estado Novo, acusando-a de inspiração fascista, tese que abre um bom debate sobre a situação mundial no início da década de 1940 e sobre em que condições o Brasil se desenvolvia depois de quatro séculos de escravidão e de extrativismo desenfreados. Importante pontuar que em 1944, quando o Brasil foi provocado a entrar na Segunda Guerra Mundial, o fez ao lado dos aliados e não dos fascistas organizados no Eixo Roma-Berlim-Tóquio. Sigamos.
A crítica aos direitos sociais e trabalhistas que a CLT proporciona ao povo brasileiro, entretanto, é algo menos comum dado o descaramento daqueles que a sustentam. E é o que, surpreendentemente, defende o advogado de larga carreira na Justiça do Trabalho, Almir Pazzianoto no artigo “Estado autoritário e legislação trabalhista”, publicado no Estadão, em 18 de maio de 2022.
O advogado diz que desde 1930 “o Brasil experimenta crescente intervenção do Estado nas relações privadas”, que “a livre-iniciativa é ficção constitucional, tantas são as exigências que cerceiam a liberdade indispensável à saúde da vida econômica” e, enfim, que “a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1.º de maio de 1943 foi uma manifestação aberta de autoritarismo”.
Seus argumentos entram em choque com uma realidade que, por seis anos consecutivos, período coincidente com a implantação da reforma trabalhista (maior ação de desmonte da CLT desde seu advento), descambou para a marca de mais de 10 milhões de desempregados. Uma realidade em que esses desempregados e mais milhões de subempregados sonham, conforme pesquisas atestam, com um emprego segurado pela CLT de Vargas.
Vamos por partes. “Desde 1930 o Brasil experimenta crescente intervenção do Estado nas relações privadas”. Mas o que havia antes de 1930 no Brasil? O que seria de nós se o Estado não interviesse nas relações sociais e trabalhistas pondo um fim na República Velha? A primeira infância da nossa República, entre 1889 e 1930, foi sustentada por uma economia agrária, governada por oligarcas que dispunham do trabalhador assalariado com a mesma mentalidade com que antes de 1888 dispunham do escravizado. Como esperar que naquelas condições os trabalhadores entrassem em acordos com os empregadores que garantissem não só a sobrevivência, mas uma vida digna que fizesse prosperar o liberalismo com que sonha Pazzianotto?
Houveram sim manifestações e greves que pressionaram empresários, fazendeiros e governantes. Mas não só elas foram esparsas, desincentivadas e duramente repreendidas, como foram resultados de exploração extrema, condições desumanas e rendimentos aquém do necessário para viver. Aí não tinha jeito. E foi através de manifestações e organizações como aquelas que se delinearam muitas das reivindicações que anos mais tarde figuraram na CLT.
O advogado vai mais fundo em sua crítica ao dizer que:
“Ao entrar em vigor, a CLT apanhou o País de surpresa. O microempresário urbano, ainda hoje predominante da economia, não conseguia entender a complexa legislação e como fazer para se acomodar às novas e inéditas regras. Se no Rio de Janeiro, capital da República, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, as empresas organizadas estavam em condições de contratar alguém apto a lhe explicar o que acontecia, no interior do País as informações seriam escassas e rudimentares. Poucos advogados estavam qualificados a dar aos clientes orientação sobre como aplicar a legislação de 922 artigos que regulamentava a identificação profissional, jornada de trabalho, férias, salário mínimo, aviso prévio, rescisão contratual, estabilidade, direito judiciário do trabalho, organização sindical, negociações e dissídios coletivos, profissões com tratamento diferenciado”.
Ora, mas se os empresários e os advogados não estavam qualificados para compreender e implementar a CLT, o que dizer da consciência dos trabalhadores nos rincões do Brasil acerca de seus próprios direitos? O que dizer sobre isso se até hoje, 2022, o Ministério do Trabalho, criado pelo governo de Getúlio Vargas na esteira da Revolução de 30, encontra trabalhadores em situações análogas à escravidão, como no caso, revelado a poucos dias, da idosa escravizada por 72 anos no Rio de Janeiro?
Para o bem ou para o mal a sociedade absorve e assimila as mudanças. No caso do advento da CLT, para o bem. Se os empresários não eram qualificados para conceder direitos, tiveram que se tornar. Sem isso as situações análogas à escravidão seriam não a exceção, mas a regra.
A pandemia de covid-19 provocou, sim, como diz Pazzianoto, grandes mudanças. Acelerou e disseminou novas formas de trabalho. Mas essas mudanças não colidem com a manutenção, ampliação e, claro, atualização dos direitos trabalhistas. Pelo contrário, a pandemia escancarou o papel do Estado em gerenciar os pontos mais estratégicos de funcionamento da sociedade, como a economia, as relações de trabalho e a saúde. Mostrou que o mercado não dá conta de enfrentar uma crise desta envergadura.
Depois de dois anos de pandemia somados ao fracasso da reforma trabalhista e aos retrocessos do desgoverno de Jair Bolsonaro, o que fica claro é que precisamos de um Estado que torne as relações patrão/empregado menos selvagens, menos predatórias e mais civilizadas.
Um Estado que siga o exemplo da implementação da CLT que, como uma das maiores medidas civilizatórias vividas pelo Brasil, forçou o rompimento com a mentalidade escravocrata, impulsionou o surgimento de uma classe média urbana e assegurou ao povo trabalhador a condição de cidadãs e cidadãos.
Alcançar o estágio de liberdade total com que Almir Pazzianotto sonha, exigirá muitas gerações cobertas por direitos trabalhistas, toda a proteção social que o povo conseguiu conquistar ao longo da história e muito mais. Exigirá uma sociedade com pleno emprego, plena escolaridade, plena saúde. Empregos, educação e saúde de qualidade. Tal estágio não chegará, portanto, sob o liberalismo.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical