PUBLICADO EM 06 de dez de 2024
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Colunista: José Dirceu

Um Brasil evangélico ou vários brasis

Tornou-se um mantra da direita e uma espécie de autoflagelo da esquerda dizer que o campo progressista se comunica pouco, e mal, com o segmento evangélico. Essa crítica costuma ganhar ainda mais amplitude em períodos eleitorais, como o encerrado em outubro deste ano, ou quando pesquisas de opinião registram afastamento do campo evangélico em relação ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Seja como for, muitas das análises são contaminadas por uma mistura perigosa de desinformação, preconceito e má-fé ante o crescimento vertiginoso do número de fiéis evangélicos, da multiplicação dos templos evangélicos e do crescente poder de representação evangélica no Congresso. Contra essa contaminação e em favor de uma nova forma de olhar o “Brasil evangélico”, tenho dito sempre que posso em conversas privadas e falas públicas: precisamos urgentemente parar de nos dirigirmos aos “evangélicos” como se fossem um país à parte, de olhares, natureza e motivações que se restringem à religião que praticam.

Parece um contrassenso fazer esse chamado diante dos números. Na década de 1970, evangélicos representavam apenas 5% dos brasileiros, eram 22% em 2010, segundo o Censo do IBGE, e hoje especialistas sugerem que abrangem um terço da população adulta. Havia cerca de 17 mil templos evangélicos em 1990, número que, em 2019, saltou para quase 110 mil, aumento de 543%, de acordo com pesquisadores da USP – boa parte desses estabelecimentos está longe da imagem dos mega templos com pastores super ricos, são espaços pequenos próximos às casas dos fiéis e com participação ativa na vida comunitária. Em suma, a malha evangélica é a força propulsora da religiosidade nacional, enquanto a outra parcela cristã, que por séculos reinou soberana sobre a fé brasileira, encolhe ano a ano. Caso mantenham o ritmo, a partir de 2032 evangélicos ultrapassarão católicos, abrindo caminho para que, em poucas décadas, possam sobrepujar a identidade católica que predominou no país.

Mesmo diante dessas evidências, insisto: precisamos parar de nos dirigirmos aos “evangélicos” apontando o dedo para eles e para sua religião como causa explicativa para fenômenos políticos e partidários. Primeiro porque historicamente somos uma nação cristã – e não deixamos, nem provavelmente deixaremos de sê-lo. Segundo porque ninguém aponta para eleitores e cidadãos católicos como o fazem para evangélicos. Terceiro, porque essa vocação nacional para ligar a religião à identidade política acaba atrelando sua visão, sobretudo entre pentecostais e neopentecostais, a valores conservadores – algo que é de real interesse exclusivo da extrema-direita, que de forma oportunista instrumentalizou a fé, como se fosse a legítima representante dos interesses cristãos, e de maneira malévola soube converter a esquerda na encarnação do mal. Quarto, porque ao fazermos essa vinculação como algo homogêneo ou uníssono, desprezamos a variedade de interesses, laços, realidades e expectativas que esse segmento do eleitorado representa.

O Estado é laico, mas é inquestionável inclusive o direito de cristãos evangélicos de fazer política, ter sua própria bancada e exercer sua luta pelos meios institucionais e partidários – assim como fizeram e fazem muitos cristãos católicos. (O que não se pode admitir é que combatam outras religiões, especialmente aquelas de matriz africana como a umbanda e o candomblé, mas esta é uma outra história.)

Se desprovidos de preconceito, constataremos que entrar para a igreja evangélica significa, para muitos brasileiros mais pobres, melhorar suas condições de vida, ascendendo socialmente, fortalecendo a autoestima, vencendo o alcoolismo e a violência doméstica, adquirindo disciplina para o trabalho e vendo crescer o investimento familiar em educação e cuidados com a saúde. Portanto, tem menos a ver com pastores oportunistas e carismáticos e muito mais com a influência das igrejas sobre a vida comunitária e sobre a melhoria das condições de vida dos mais pobres – é uma aposta na espiritualidade e nos valores, mas também uma forma de experiência com quem vive em seu entorno, nas periferias, nas favelas e demais espaços das classes populares.

Se providos de informação, reconheceremos que está na base da pirâmide mais evangélica uma população de maioria periférica, negra, feminina e mais praticante da religião, num Brasil até bem pouco tempo de maioria católica não-praticante. E que, portanto, se move a partir de questões reais de suas vidas, por necessidades práticas do seu cotidiano e não apenas por fake news espalhados pela extrema-direita oportunista, violenta e intolerante. Enxergando assim, vemos que o “povo de Deus” tem muitas similaridades com o “povo de Lula”, que esteve com o presidente e o PT em sucessivas eleições, como 2002, 2006, 2010 e 2014. Havia uma aspiração e uma consequência em comum: um governo que se preocupava

E, por fim, se abdicamos da má-fé, lembraremos que, embora estejamos falando de segmentos com posicionamentos cada vez mais conservadores, também falaremos do quanto lideranças religiosas de amplitude nacional adotaram o bolsonarismo como referência política e ideológica. Como pastores de intenção questionável como Silas Malafaia têm espaço, força e voz para difundir suas ideias, não-evangélicos acabam tomando a parte pelo todo. Se é verdade que o bolsonarismo se amalgamou com o campo evangélico nos territórios, também é verdade que, diferentemente do que muitos pensam, “valores” estão muito atrás na lista de preocupações do segmento evangélico – ficam distante, por exemplo, de problemas como “criminalidade e tráfico de drogas”, “corrupção” e questões materiais como crescimento econômico, emprego e renda.

Não basta deixar de tratar evangélicos como um Brasil à parte ou de ver evangélicos como fanático, conservador ou intolerante – eles existem, sim, mas estão longe de ser maioria. Se no passado fizemos política com os católicos, os bispos, as comunidades eclesiais de base e as pastorais católicas, não podemos olhar com desconfiança quando partidos e lideranças recorrem a lideranças e igrejas evangélicas como forma de atuação política. O credo da esquerda é sincrético, e isso implica tanto desfazer preconceitos quanto escolher adequadamente mensagens e mensageiros como forma de se conectar com os diferentes segmentos, independentemente de suas religiões. A essência do projeto progressista é combater as desigualdades, reduzir a pobreza e melhorar as condições materiais da população, assim como entender suas expectativas e valores. É, em síntese, estar ao lado do povo – como historicamente desejou a esquerda, o PT e o presidente Lula. E as igrejas evangélicas estão.

Sair dos valores, terreno onde a visão pantanosa do bolsonarismo prefere caminhar, e migrar para as condições reais – eis a missão do campo progressista para os próximos anos. Não podemos lutar contra a fé das pessoas, temas como aborto, casamento do mesmo sexo, entre outras, estarão invariavelmente contaminados pela dimensão da fé e da religião. Um exemplo? Uma das principais reivindicações das mulheres evangélicas é poder deixar o seu filho na escola durante todo o dia. Essa reivindicação é acolhida pela educação em tempo integral, uma das bandeiras do governo Lula. Há muitos outros exemplos, que passam pelas condições de emprego e renda, pelo estímulo ao empreendedorismo (não o empreendedorismo precarizado simbolizado pelos aplicativos de delivery), pelo enfrentamento da criminalidade, por políticas que desconcentrem a renda e a riqueza, e assim por diante. Não é tarefa trivial, mas precisa ser iniciada imediatamente.

José Dirceu é Advogado e militante político, natural de Passa Quatro (MG), Dirceu iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil. Foi presidente nacional do PT, deputado estadual por São Paulo de 1987 a 1991, deputado federal por São Paulo três vezes entre 1991 e 2005 e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro governo Lula, em 2003

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