“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”
Lazzo Matumbi
No dia em que a Lei Áurea fez 134 anos, uma mulher negra foi resgatada da condição de escravização que sofreu por 72 anos. Na mesma semana, nove pessoas foram assassinadas em Altamira. Em 2021, 109 pessoas foram mortas em conflitos no campo. Dessas, 101 eram yanomamis. No mesmo ano, mais de 100 pessoas foram atingidas por balas perdidas apenas no Rio de Janeiro. Em abril de 2021, uma reportagem do El País referia a morte de 100 crianças por balas disparadas em operação policial nos últimos cinco anos no Brasil. Um cenário de guerra. À essa violência somam-se outras. Em junho de 2021, a Folha de São Paulo publicou matéria segundo a qual 14 mil famílias haviam sido despejadas de suas casas desde março de 2020, em plena pandemia. Outras 84 mil estavam sob a ameaça de perder a moradia.
Segundo o Justiça em Números do CNJ, em 2021 pelo menos 12% das ações ajuizadas na Justiça do Trabalho versaram sobre questões relativas à perda do emprego. Esse percentual é alarmante. São demandas que envolvem ausência de pagamento dos valores necessários à sobrevivência física imediata. Práticas que implicam a concreta privação da possibilidade de sobreviver.
A PNAD contínua relativa ao primeiro trimestre de 2022 aponta a existência de 65,3 milhões de adultos “fora da força de trabalho”. Refere “taxa de subutilização” (que está em 23,5%), o que representa 27,3 milhões de pessoas inseridas no critério da “população subutilizada”. “Subocupação”: pelo menos 944 mil pessoas estão trabalhando menos horas, com remuneração ainda mais baixa do que aquela representada pelo salário mínimo. “População desalentada”: 4,7 milhões de pessoas já desistiram de procurar trabalho. O mais impressionante é que vários desses índices “apresentaram melhoras” em relação ao trimestre anterior. Um quadro trágico traduzido em números e expressões que pretendem naturalizar o insuportável.
Segundo o DIEESE, a cesta básica em 2022 custa mais de R$ 1.200,00. Por consequência, um salário mínimo que permitisse morar, vestir, alimentar-se e cuidar da saúde, teria de ser de pelo menos R$ 6.754,33. Um botijão de gás custa, hoje, de R$ 112,00 a R$ 160,00. Um litro de gasolina, R$ 7,298.
Enquanto isso, entre 2020 e 2021, foram R$ 3,5 bilhões de orçamento “secreto” entregue a parlamentares que seguem ignorando os mais de 100 pedidos de impeachment, enquanto aprovam leis como a que aumenta o orçamento para propaganda, em pleno ano eleitoral, autorizando gastos de até R$ 903 milhões (13,7% acima do orçamento de 2021). Não há falta de dinheiro público. Não é culpa da guerra ou da pandemia. E nem de um único sujeito.
Todos esses dados aparentemente desconexos têm muito em comum. Eles revelam uma subjetividade escravista. O aumento da miséria e do rebaixamento das condições de vida tem direta relação com a ausência de investimento, de distribuição de renda e de valorização das empresas estratégicas. Com a privatização, a terceirização, a insistência em produzir legislações que retiram direitos sociais. Com a gestão irracional da pandemia. É, portanto, resultado de escolhas partilhadas por uma parte significativa do povo brasileiro, que de forma declarada ou inconsciente compactua com essas tantas práticas de violência.
A vida piorou para quem não vive de investimentos nem usufrui das benesses de práticas corruptas de gestão de recursos públicos. Ainda assim, o discurso homofóbico e sexista, que nega a ciência, que boicotou todas as iniciativas de contenção da pandemia, liberou a utilização de veneno na comida e promove uma política de morte contra as populações indígenas e periféricas tem cerca de 30% das intenções de voto.
Não se trata apenas de alienação promovida pela prática de acesso à informação através de redes sociais controladas por algoritmos. É evidência concreta da persistência dessa subjetividade escravista. Para compreendermos essa persistência, precisamos retornar ao tempo da chegada dos europeus ao Brasil, com sua política de extermínio da cultura e dos corpos dos povos originários. Ao período de institucionalização do trabalho forçado, da violação das mulheres, do aprisionamento e do açoite, supostamente superado por uma lei de artigo único, que negou inclusão social, enquanto recalcou o racismo, criando estruturas para perpetuá-lo. Devemos retornar ao tempo do terrorismo ditatorial que administrou o país como se fosse um clube de amigos, prendendo, torturando e matando quem a ele não pertencesse. E não apenas para saber o houve. Para compreender que esse tempo persiste, suspenso entre soluços de democracia, historicamente sustentada por políticas de conciliações espúrias, permitida apenas e na medida em que não afete a dinâmica da dominação.
A Constituição de 1988 construiu um outro discurso possível. Insuficiente e repleto de falhas, esse discurso, de qualquer modo, buscou inaugurar um novo tempo, no qual essa subjetividade escravista pudesse ser superada. Mas discurso não basta. É preciso lembrar que foi naquele mesmo ano de 1988 que pela primeira vez se elegeu o deputado federal que em 2019 viraria presidente da República. Durante os 27 anos em que esteve no Parlamento, defendeu ausência de eleições, tortura e morte. Falou contra indígenas, mulheres e a população LGBTQIA+. E seguiu sendo reeleito. Assumiu a presidência, depois de homenagear um militar condenado pelo crime de tortura, com mais de 57 milhões de votos! Sustentado, portanto, por um número impressionante de pessoas.
A disseminação da falsa teoria de que as urnas eletrônicas não são confiáveis e a tentativa nada republicana de controlar pela força as atividades eleitorais só não terão a repercussão desejada, se o apoio popular a esse discurso for rompido. Não se trata de tarefa fácil. Estamos aprisionados nesse tempo suspenso de um país que não consegue realizar suas promessas de bem viver. Alterar práticas disseminadas de violência ostensiva ou disfarçada, como aquela que até hoje nega efetividade ao dever de motivação da dispensa ou justifica piadas e brincadeiras que reforçam uma subjetividade escravista e homofóbica, demanda tempo, investimento em educação transformadora, reajuste da nossa linguagem e de nossas práticas cotidianas. Exige, sobretudo, a recuperação de um horizonte revolucionário completamente abandonado no quadro político tradicional.
Na música que serve de epígrafe para esse texto, há um trecho que diz “minha alma resiste, meu corpo é de luta, eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu; a coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa; eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu”. Eis a hora de descobrir quem se é. Se queremos realmente construir uma outra subjetividade, que atue para combater essas tantas violências, temos um longo trabalho pela frente. O medo sempre foi mobilizado contra todas as tentativas de mudança. Não há aí novidade. Mas antes de nós, outros já re-existiram, em condições bem mais adversas.
Uma sociedade diferente não surgirá da eleição, especialmente porque não existem propostas concretas que indiquem avanços no sentido de superação dessas violências naturalizadas. Seria tempo de radicalizar o discurso por mudanças estruturais mais profundas. Isso não compromete, de qualquer modo, a importância da possibilidade de votar contra a evocação perversa e entusiasta dessa subjetividade escravista. E de exigir o respeito ao voto, impedindo o golpe e toda a violência que ele poderá aprofundar. É urgente fazer valer a Constituição, para então poder avançar, pois há muito a fazer. O que importa é perceber que 2022 é tempo de mudança e ela começa pela explicitação do que não iremos mais suportar.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.