“Será que é tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder?”
Lenine
Essa música sempre retorna na minha mente. A cada notícia tenebrosa, a cada olhar de cansaço, a cada manifestação de exaustão com a realidade que precisamos enfrentar todos os dias, é dela que lembro. A vida não para, mas nós precisamos parar.
O teletrabalho, única alternativa dada para muitas trabalhadoras e trabalhadores durante a pandemia, reacendeu a discussão sobre o direito à desconexão. Um tema fundamental, pois a colonização do tempo de vida pelo tempo de trabalho obrigatório nos impede, concretamente, de viver. Falta tempo para todo o resto: ler, estudar, compartilhar experiências, apreciar a natureza, namorar ou mesmo agir politicamente. O redimensionamento do tempo e do espaço, confundindo lazer com trabalho, misturando tarefas e ambientes, nos isola e faz adoecer. E destrói nossa capacidade de agir politicamente.
Sob a perspectiva do trabalho obrigatório e das exigências de consumo do mundo contemporâneo, somos ativados o tempo inteiro. Não há domingo ou madrugada capaz de impedir o moto-contínuo do mundo virtual que nos alcança e nos convoca. E não se trata apenas de trabalhar mais horas, passar mais tempo interagindo com máquinas. Também há uma mudança radical na forma como o tempo passa. Rompemos a barreira do tempo de trabalho que antes era identificado pela jornada, que tinha início e fim. Fazemos tudo ao mesmo tempo agora.
Também rompemos a barreira do espaço entre o local de trabalho e aquele em que vivemos. Participar de duas reuniões, enquanto cozinha ou resolve alguma questão de trabalho passou a ser uma situação comum, sobretudo para as mulheres trabalhadoras. A qualidade se perde. É tarefa impossível dar a atenção necessária para cada uma dessas atividades. O tempo se esvai com mais rapidez, levando consigo nossa capacidade de concentração e, especialmente, de abstração e reflexão sobre o que nos implica.
Essa conexão desconecta. Mais: nos torna seres incapazes de fazer conexões.
Esse é o paradoxal resultado da conexão excessiva, ditada pela lógica da virtualização do mundo. Estamos o tempo todo consultando redes sociais, acessando e-mails ou trabalhando, mas não conseguimos compreender as ligações entre o que acontece ao nosso redor. Sem compreender as causas do que nos destrói, não apenas como seres viventes, mas especialmente como coletividade, seguimos para o abismo, com os olhos voltados para a tela do celular.
Escrevi sobre isso em um livro, em 2014, para concluir que o grande desafio estava em devolver às pessoas o tempo livre, permitindo que elas recomeçassem o debate urgente e indispensável sobre a necessária superação de um sistema que dá claros sinais de esgotamento. De lá pra cá, muita coisa mudou… para pior.
E essa necessidade se tornou ainda mais premente.
É tempo que nos falta para perceber, como diz a música de Lenine.
Maio de 2022. Altamira registra 12 mortes em duas semanas. Ativistas denunciam massacre contra lideranças indígenas. No Rio, 26 pessoas são chacinadas em mais uma ação violenta da polícia, desta vez na Vila Cruzeiro. Genivaldo, um homem negro, diagnosticado com esquizofrenia, pobre, de 38 anos, é parado pela polícia de Sergipe e morto dentro da viatura, asfixiado. Estragos decorrentes de uma chuva intensa e inusitada naquela parte do país, provocam a morte de pelo menos 84 pessoas e mais de 4.000 ficam desabrigadas em Recife.
O mais impressionante é que esses atos são explicados em coletivas de imprensa, em notas que naturalizam a brutalidade de mortes desnecessárias.
Reportagens são feitas discutindo a capacidade dos policiais de lidarem com situações de resistência. Como se houvesse alguma dúvida sobre a estupidez de colocar alguém em um camburão com as pernas presas e sufocá-lo com gás lacrimogêneo. Como se matar alguém à faca durante uma investida policial fizesse sentido em qualquer cenário. Informa-se sobre as chuvas e os desmoronamentos como se fossem produto do acaso, e não de uma ação predatória sobre a natureza.
Qual é a conexão entre esses eventos e esse discurso que parece querer esconder o sangue, a dor, a crueza de tragédias que deviam ser evitadas?
O que precisamos compreender é que a política de destruição e violência, que retira legitimidade das instituições enquanto legitima a truculência policial, é a mesma que destrói o ambiente multiplicando catástrofes. É também a mesma que permite revigorar um discurso fascista que apenas pessoas muito ingênuas imaginavam superado pela retórica da Constituição cidadã.
O discurso eleito em 2018 não inaugurou a violência nem o descaso com as populações originárias, com a natureza, com as pessoas pretas e pobres das periferias. Mas elevou a outro nível a política de fazer sofrer, de fazer morrer sempre os mesmos corpos. Nos últimos anos, houve recorde no número de novos agrotóxicos, cujo uso passou a ser permitido na produção de alimentos. Já são 4.644. Desses, 1.560 foram autorizados durante o atual governo. O desmatamento cresceu 29% em 2021, atingindo o pior número dos últimos dez anos.
O Brasil é o quarto país do mundo em assassinato de ativistas ambientais, segundo a ONG Global Witness. Em 2021, os assassinatos no campo subiram 75%, de acordo com os dados da Pastoral da Terra. Em 2020, durante o auge da pandemia, 6.416 pessoas foram mortas por forças de segurança. Apenas de maio de 2021 até hoje o Rio de Janeiro contabilizou 31 chacinas e 165 mortes em operações policiais, conforme levantamento do Instituto Fogo Cruzado.
A própria pandemia é exemplo da catástrofe ambiental que se precipita sobre nós, enquanto a forma como foi gerida – resultando redução de salário, desemprego e quase 700 mil mortos – é reveladora de um projeto de Estado que é o fio capaz de fazer compreender a trama que une eventos aparentemente desconexos.
Diante desse quadro tenebroso, o direito à desconexão se revela ainda mais necessário.
É preciso ler notícias e compreendê-las dentro de um quadro de relações sociais que se implicam. Estudar nosso passado para perceber porque o fascismo se reproduz mesmo entre os oprimidos, multiplicando cenas dantescas como aquela que resultou a morte de Genilvaldo. Compreender como os discursos violentos de quem ocupa postos de poder repercutem, criando uma cultura que naturaliza a eliminação física de pessoas de determinados grupos sociais. E o quanto essa violência é taticamente útil para que a política de desmanche do Estado siga sendo executada.
É preciso ouvir quem grita por socorro e ter coragem para intervir; não apenas filmar em tempo real mais um assassinato a sangue frio. É preciso chorar nossos mortos. Enxergar os efeitos da destruição ambiental. E debater alternativas, antes que seja tarde demais.
Para tudo isso, é preciso tempo.
Para que haja mudança, precisamos desconectar e reaprender a fazer conexões sobre o que realmente importa. E então agir, impedindo que essa realidade de violência e destruição prossiga. Do contrário, estaremos fadados a repetir os mesmos erros, até que se esgote o tempo do nosso futuro.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.