É histórica a tendência dos nossos presidentes da República a dilatar o raio de ação delimitado pelas Constituições democráticas para invadirem a esfera reservada ao Poder Legislativo. Leia-se, a respeito, o livro Sua Majestade o Presidente do Brasil – Um Estudo do Brasil Constitucional (1889-1934), escrito por Ernest Hambloch (1886-1970), cônsul inglês que viveu no Brasil durante 25 anos. A obra, traduzida por Lêda Boechat Rodrigues, com apresentação de José Honório Rodrigues, foi editada pela Universidade de Brasília em 1981 e pertence ao rol das que devem ser consultadas por quem deseja desvendar as origens do autoritarismo tupiniquim.
A medida provisória (MP) é filha legítima do decreto-lei criado por Francisco Campos na Carta Constitucional de 1937. Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas manteve trancado o Poder Legislativo e dele se serviu como instrumento de governo (1937-1945). Na Constituição liberal de 1946 não estava previsto; durante o regime militar, porém, foi reabilitado e frequentemente utilizado (1964-1985). A Constituição de 1988, apesar de comprometida com a instituição do Estado de Direito democrático, exibe a insólita figura da medida provisória, posta à disposição do presidente da República no artigo 62, para usá-la a pretexto de gravidade e urgência, quase sempre, porém, de maneira atabalhoada.
O texto original do artigo 62 era constituído pela parte inicial, conhecida como caput, complementada por parágrafo único com a seguinte redação: “As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.
O uso incessante e arbitrário de MPs, por sucessivos presidentes, provocou a reação do Congresso Nacional, cuja imagem se desacreditava diante da comunidade política, inconformada com a banalização de medida autoritária de caráter excepcional. Entre a data da promulgação da Lei Fundamental, 5/10/1988, e a entrada em vigor da Emenda n.º 32, 12/9/2001, haviam sido editadas 616 medidas provisórias, acrescidas de 5.513 reedições, o que significava 6.102 intromissões do Poder Executivo em assuntos do Poder Legislativo.
A recente Medida Provisória 873, do dia 1.º de março último, é exemplo cabal de invasão pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, da esfera da legislação do trabalho, com o objetivo de anular cláusula de acordo ou convenção coletiva. Prescreve o artigo 579 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com a redação dada pela MP: “O requerimento de pagamento da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e voluntária do empregado que participar de determinada categoria econômica ou profissional ou de profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão ou, na inexistência do sindicato, em conformidade com o disposto no art. 591”. O parágrafo 2.º do dispositivo, por sua vez, determina: “É nula a regra ou a cláusula normativa que fixar a compulsoriedade ou a obrigatoriedade de recolhimento a empregados ou empregadores, sem a observância do disposto neste artigo, ainda que referendada por negociação coletiva, assembleia-geral ou outro meio previsto no estatuto da entidade”.
O exame da validade de cláusula de acordo ou convenção coletiva é problema afeto à competência da Justiça do Trabalho, a teor do que dispõe o artigo 114, I e IX, da Constituição. Quando ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), participei de julgamentos de ações anulatórias propostas pelo Ministério Público do Trabalho destinadas a contestar cláusulas acordadas ou convencionadas entre sindicatos patronais e profissionais, ou empresas e sindicatos. Basta examinar o rol dos Precedentes Normativos do TST para conhecer a quantidade de assuntos dessa natureza submetidos à jurisdição da Justiça do Trabalho.
Submisso ao modelo corporativo fascista desde a Carta de 1937, o movimento sindical padeceu duro golpe na reforma trabalhista. Ao converter a contribuição sindical regulada pelos artigos 578/610 da CLT em pagamento condicionado à autorização individual prévia e expressa, a Lei n.º 13.467, de 13/7/2017, privou as entidades sindicais de substancial fonte de recursos. No afã de dificultar o recolhimento anual de um dia de salário, previsto por decreto-lei de 1940 e incorporado à CLT em 1943, o legislador deu origem a cruel paradoxo: a representação sindical compreende o âmbito abstrato da categoria, mas o desconto da contribuição sindical deixa de ser obrigatório para se tornar voluntário, o que significa, na prática, que se reduzirá drasticamente. Obrigados pela Constituição e pela lei a representar quem não é associado, os sindicatos prestarão assistência gratuita à grande maioria, em prejuízo dos que arcam com o custeio da entidade.
É impossível prever como reagirá a Justiça do Trabalho. O artigo 114 da Lei Fundamental é expresso no sentido de lhe competir julgar as ações oriundas das relações de trabalho. O ideal seria o governo se apressar na ratificação da Convenção n.º 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mensagem nesse sentido foi enviada em maio de 1949 pelo presidente Eurico Dutra ao Poder Legislativo. Depois de aprovada na Câmara dos Deputados em 1984, hiberna no Senado à espera de definição.
A Constituição reconhece a validade de acordos e convenções como fontes de direitos e obrigações para as classes trabalhadoras. As Convenções 58 e 154 da OIT, ambas sobre a proteção das negociações coletivas, foram ratificadas e incorporadas à legislação interna.
Em minha opinião, portanto, a Medida Provisória 873 é inconstitucional.
Almir Pazzianotto Pinto é advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho