‘Se alguém disser pra você não cantar
Deixar teu sonho ali pr’uma outra hora
Que a segurança exige medo
Que quem tem medo Deus adora
Se alguém disser pra você não dançar
Que nessa festa você tá de fora
Que você volte pro rebanho
Não acredite, grite, sem demora…
Eu quero ser feliz agora’
(Osvaldo Montenegro)
Com esse título, Osvaldo Montenegro tem uma música que, longe de ser hedonista, nos convoca a refletir sobre a ideologia da modernidade. Sobre a razão que nos convoca a adiar planos, a buscar adaptação, a ser eficiente para o sistema. Ouvindo-a, pensei no movimento Revoga Já.
O movimento tem como pauta central a revogação da “reforma trabalhista”. Não há consenso sequer sobre o que exatamente significa esse termo. Para muitas pessoas, “reforma trabalhista” é sinônimo da Lei 13.467/2017, o maior ataque à proteção social em um único texto legal. O título “reforma trabalhista” foi cunhado por quem atuou para fazer aprovar essa lei, de forma ostensiva ou nos bastidores, através da reprodução de “notícias” sobre os supostos avanços que com ela seriam alcançados. O propósito do termo era construir a retórica de que se tratava de melhoria, a nova forma de uma lei apontada como velha, em uma sociedade na qual velho é sinônimo de descartável, de algo ultrapassado.
“Reforma trabalhista”, porém, logo passou a ser identificada por alguns como expressão de um movimento de alterações legislativas que iniciam com a EC 95/2016 (a PEC do “fim do mundo”), que congelou gastos sociais por 20 anos, e segue se concretizando com as leis 13.429, 13.467, 13.874, 14.020, EC 103, além de outras que compõem um quadro de retirada de direitos cada vez mais profundo.
Há, por fim, quem pensa o termo como algo ainda mais amplo. Abrange essas leis, mas também as decisões judiciais que negam ou destroem direitos; os entendimentos da Justiça do Trabalho que autorizam a burla aos limites constitucionais de proteção ao trabalho; as medidas provisórias que a pretexto de enfrentar a pandemia colocaram trabalhadoras e trabalhadores em situação de ainda maior precariedade; a revisão das normas de proteção à saúde. Ou seja, por “reforma trabalhista” temos um movimento organizado de destruição daquilo que compreendemos como direito material e processual do trabalho.
O movimento Revoga Já! tem a oportunidade de colocar em pauta inclusive essa disputa semântica sobre o alcance da expressão, tornando claro o objetivo dessa mobilização de entidades ligadas ao mundo do trabalho.
É aí que a música de Osvaldo Montenegro encontra, em minhas reflexões, o movimento Revoga já. Revogar é necessário, falar disso é essencial. Sem enunciar o problema, sequer conseguimos compreendê-lo, para poder enfrentá-lo. Ainda assim, é preciso saber o que queremos revogar e, sobretudo, o que colocaremos no lugar do que temos agora. Pois o que temos agora é o completo descompromisso com a ordem jurídica de proteção social. É preciso, então, saber se a disputa é pela possibilidade de ser feliz agora ou se estamos apenas ganhando tempo, enquanto o Direito do Trabalho já respira por aparelhos.
O problema é que esse agora de descompromisso com os direitos sociais não inicia em 2016. Vem de longe. Finca raízes em uma história feita de escravização, autoritarismo e exceção, na qual direitos sociais nunca foram realidade, para boa parte da classe trabalhadora. Afinal, não há como falar em um novo tempo, sem superar a ausência de compromisso com a garantia contra a despedida ou com o direito fundamental à relação de emprego, ambos previstos no inciso I do artigo 7º da Constituição. Ambos, negligenciados de forma reiterada nessas últimas três décadas, através da facilitação das despedidas, da manutenção de regras inconstitucionais como aquela da justa causa, da aceitação de formas de exploração do trabalho sem proteção alguma, no universo daquilo que se convencionou denominar “uberização”.
Na música, Montenegro diz “se alguém vier com papo perigoso de dizer que é preciso paciência pra viver, que andando ali quieto, comportado, limitado, só coitado, você não vai se perder”, é preciso fazer o contrário: jogar-se na “primeira ousadia, que tá pra nascer o dia do futuro que te adora”. O que ele está dizendo é que é preciso ir mais longe, desejar profundo, pois o que está em disputa é uma vivência que faça sentido. Ser feliz, nesse contexto, não é prerrogativa do indivíduo. Depende de construir uma sociedade, na qual todas as pessoas tenham condições de bem viver. Os direitos sociais trabalhistas, em uma sociedade capitalista, são, no mais das vezes, o único caminho para isso.
O recado de Montenegro, transposto para o mundo do trabalho, é aquele em que Jorge Souto Maior e eu viemos insistindo há muito tempo. É urgente abandonar o discurso do mal menor. O que tem sido feito, desde a Constituição de 1988, com um direito que foi reconhecido como condição de possibilidade para o bem viver, torna cúmplices da destruição todas aquelas e aqueles que, por ação ou omissão, compactuam, aceitando terceirização, quitação de contrato em acordo trabalhista, jornada de 12h, falsos prepostos, falsas garantias para a execução. Os exemplos são tantos.
É de um outro discurso para o Direito do Trabalho que precisamos. Revogar uma lei ou um conjunto de leis, só será relevante se a revogação for integral e se for concebida como o primeiro passo para a construção de uma outra teoria, que implique uma prática absolutamente diversa em relação aos direitos trabalhistas.
É urgente revogar a integralidade das leis 13.429, 13.467, 13.874, as Emendas Constitucionais 95 e 103. Mas é também urgente exigir que se reconheça o dever de motivação da despedida, o direito fundamental à relação de emprego, o fim de todas as formas de terceirização. É necessário que se discuta, como já fazem outros países, a redução da jornada de 8h, acabando com qualquer possibilidade de extensão para além desse limite perverso. É preciso que se restabeleçam critérios de juros e correção monetária, que efetivamente reponham a perda em relação aos créditos trabalhistas. É necessário acabar de vez com qualquer forma de prescrição de crédito alimentar. É urgente que se elimine, definitivamente, a possibilidade de conciliação que implique renúncia e contenha cláusula de vedação de acesso à justiça, como a tal “quitação de contrato”. É preciso reconhecer a função das partes em audiência, para ultrapassar compreensões distorcidas do texto legal que permitam às empresas levarem atores/atrizes para as salas de audiência, pessoas completamente estranhas à relação social de trabalho, que estudaram documentos para serem arguidas, como se estivessem em uma prova de concurso, e não depondo sobre fatos relevantes para a análise de situações que atingem diretamente a vida de trabalhadoras e trabalhadores. É necessário levar a sério normas de segurança da saúde de quem trabalha. É preciso entender a importância da garantia de uma execução de crédito alimentar.
A lei 13.467, com todo o potencial destrutivo que possui e que tem se materializado em entendimentos e decisões que fazem da ação judicial uma alternativa rejeitada pela maioria de quem sofre danos em uma relação de trabalho, não é – nem de perto – o pior dos nossos problemas, caso ousemos construir uma realidade de compromisso com a ordem jurídica fundada na dignidade humana. E não estou falando de atos revolucionários ou de mudanças estruturais que, sem dúvida alguma, também precisam ser enunciadas e discutidas com seriedade, afinal chegamos a um ponto de esgotamento ecológico dessa forma de sociabilidade.
“Eu quero ser feliz agora” deve ser o subtítulo de uma campanha que busque a revogação de leis inconstitucionais, mas que também pretenda uma profunda mudança no discurso legislativo e judicial. Do contrário, estaremos apenas servindo para que uma vez mais movimentos legítimos sejam transformados em argumento de (falsa) composição de interesses. Já tem gente por aí dizendo que, se “não for possível a revogação integral”, que discutamos a alteração de alguns dispositivos da “reforma”. Ora, isso significa perder de saída, negar a própria luta, capitular antes mesmo da disputa. Para isso, não precisa encontro, não servem reflexões mais profundas, nenhum movimento. Basta uma mesa, alguns homens de terno, um aperto de mãos e o Direito do Trabalho seguirá sendo, na prática, a negação reiterada de sua própria razão de existência.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.