Contar a trajetória dos Racionais MCs não é tarefa simples pela complexidade de sua obra e da vida dos quatro integrantes do grupo de rap de São Paulo. A cineasta Juliana Vicente consegue tal façanha com maestria ao mostrar a vida na periferia como ela é, na maior cidade do país, em 116 minutos.
A história de vida de Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock, integrantes do grupo, mistura-se com a vida infernal da periferia em grandes cidades como São Paulo. E o inferno está na ausência do estado e, portanto, de políticas para o atendimento das necessidades das pessoas, ainda mais dos jovens, sem espaço para expressar os seus desejos, as suas necessidades.
O documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo (2022), na plataforma de streaming Netflix, conta a vida do grupo e a falta de tudo na periferia. Falta de investimentos em tudo. O que sobra para a juventude é a rua para expressar toda a sua potencialidade, seja com a cultura, seja de outras formas menos enobrecidas.
A história contada nas entrevistas com os integrantes do grupo é um panorama da história dos jovens pretos e pobres de todas as periferias das grandes cidades. Denota também a força do movimento hip-hop, de origem estadunidense, que se espalhou ao conquistar a juventude dos bairros operários de todo o mundo.
O encadeamento dinâmico dado ao filme aponta as consequências da mentalidade escravocrata fortemente presente na sociedade brasileira e como os policiais de hoje agem tal qual os capitães de mato de outrora, ou até pior, por se acharem “autoridades” inquestionáveis; principalmente nas periferias onde agem com ódio visceral.
Veja o trailer de Racionais: das Ruas de São Paulo pro Mundo
O rap é a expressão musical do hip-hop que deu perspectivas de vida a uma juventude que não possuía nenhuma. Nítida a necessidade de políticas públicas que marquem com a presença do estado nas periferias de forma distinta da repressão, pela violência policial.
O documentário mostra como o ódio dos policiais ao grupo foi nutrido pela porrada de suas canções com poemas diretos e contundentes. Um soco no estômago da consciência de uma sociedade dominada pelo racismo e pelo ódio de classe. Em mais de 30 anos de carreira, os Racionais colecionam conflitos com a polícia paulista como a violência desmedida ocorrida na Virada Cultural paulistana, em 2007.
“Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
Será que Deus ouviu minha oração?
Será que o juiz aceitou a apelação?
Mando um recado lá pro meu irmão
Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão”
“É um dia de felicidade muito grande pra mim. A cidade acordou leve, a quebrada acordou leve, naquela paz, há muito tempo que não sentia isso, momento único”, disse Mano Brown sobre a eleição do presidente Lula, na pré-estreia do filme na Cinemateca de São Paulo, dia 16 de novembro.
O rapper fala da importância da eleição de um presidente comprometido com os mais pobres, com a juventude, com as mulheres, a população negra, os povos indígenas, com as pessoas LGBTQIA+. Alguém que valoriza a cultura e combate as desigualdades e o preconceito.
“É muito fácil fugir, mas eu não vou
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou
Eu gosto de onde eu vou e de onde eu vim
Ensinamento da favela foi muito bom pra mim”
(Fórmula Mágica da Paz, de Edi Rock e Mano Brown)
“São heróis os quatro, são pessoas que amam, pessoas que fazem, são instrumentos da cultura hip-hop, que mudou gerações e vão continuar mudando, a música dos caras é muito honesta, muito sincera, pra produzir Oitavo Anjo, uma música que fala bastante com as pessoas também, tudo isso aprendi com eles, fazer, a escrever. No fundo, no fundo é só deixar o coração falar, foi isso que o Brown me falou nos anos 90”, conta Dexter.
Como na canção Marighella (Mil Faces de Um Homem Leal, 2012), de Mano Brown, onde o grupo canta que “essa noite em São Paulo um anjo vai morrer/ Por mim, por você, por ter coragem em dizer” sobre o revolucionário Carlos Marighella, assassinado pela polícia da ditadura (1964-1985) em 4 de novembro de 1969. A música faz parte da trilha sonora do filme Marighella (2019), de Wagner Moura.
Fica clara a influência dos Racionais sobre os rappers que vieram depois deles e que esse gênero musical ganhou nuances brasileiras com a mistura de sons, mantendo a pegada firme, dura e direta do rap. Talvez por isso tenha colado tão bem nos corações e mentes dos jovens que sonham com uma vida digna, em meio à miséria quase absoluta. Porque o sonho empurra a humanidade para a luta.
Vida Loka parte 2 (2002), de Mano Brown
“Pode rir, ri, mas não desacredita, não
É só questão de tempo o fim do sofrimento
Um brinde pros guerreiro, zé povinho eu lamento
Vermes que só faz peso na Terra
Tira o zóio, tira o zóio, vê se me erra
Eu durmo pronto pra guerra e eu não era assim
Eu tenho ódio e sei que é mal pra mim
Fazer o que se é assim? Vida loka, cabulosa
O cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas
E eu que, e eu que sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Desbicando pipa, cercado de criança”
Racionais: das Ruas de São Paulo pro Mundo nos remete a compreender mais do que o mundo do hip-hop, mas toda a vida sofrida, e ao mesmo tempo esperançosa, onde há muito pouco para se ter esperança de algum futuro. Mas a vida brota em todos os cantos e o canto dos Racionais nos leva à resiliência e a entender o papel da cultura e da arte na vida das pessoas. A necessidade de sobreviver mesmo que no inferno.
Porque Periferia É Periferia (1995), de Mano Brown:
“A revolta deixa o homem de paz imprevisível.
Com sangue no olho, impiedoso e muito mais.
Com sede de vingança e prevenido.”
O documentário tem a força da arte com vontade de mudar o mundo. Mostra que os quatro componentes dos Racionais com tudo contra conseguiram transformar o grupo num dos mais importantes da música popular brasileira. Também mostra a necessidade que a humanidade tem de viver com arte.
A cineasta
Juliana Vicente é diretora, roteirista, produtora e fundadora da Preta Portê Filmes. Iniciou sua carreira com o curta Cores e Bota (2010), exibido mundialmente em mais de 100 festivais. Integrou o grupo do Berlinale Talents (2015), no Festival de Berlim, mesmo ano em que foi premiada com a coprodução A Terra e a Sombra, no Festival de Cannes. É criadora e diretora da série Afronta! (2017), disponível na Netflix.
Marcos Aurélio Ruy É jornalista