PUBLICADO EM 21 de dez de 2025

Colunista: Carolina Maria Ruy

Pós-modernidade e a disrupção enganosa

Descubra como a música Bizarre Love Triangle exemplifica a pós-modernidade e sua relação com a cultura de massa.

New Order em foto de 1985. Bizarre Love Triangle sob a lente da Pós-modernidade e entenda seu impacto cultural ao longo dos anos.

New Order em foto de 1985. Bizarre Love Triangle sob a lente da Pós-modernidade e entenda seu impacto cultural ao longo dos anos.

Bizarre Love Triangle é uma música eletrônica da banda inglesa New Order, lançada em 1986. Na época, além da música, o videoclipe era uma obra à parte. E o vídeo dessa canção é claramente uma peça pós-moderna.

Se a forma de consumir música mudou muito em 40 anos — havia o videoclipe e o álbum físico, em vinil, algo bastante diferente de hoje, quando as músicas são lançadas individualmente, de forma digital e sem grande preocupação com o vídeo —, as mensagens expressas nessas obras não mudaram.

Você pode pensar: é apenas uma música pop! Mas ela pode ser lida como um simulacro da situação definida pelo geógrafo David Harvey em seu livro Condição Pós-Moderna[1]. Para Harvey, o pós-modernismo, alinhado à cultura de massa, é “conscientemente antivanguardista”. A partir dos anos 1960, observa o autor, houve uma “degeneração da autoridade intelectual sobre o gosto cultural e sua substituição pela pop art e pela moda efêmera”.

Bizarre Love Triangle completará 40 anos em 2026, enquanto o livro à luz do qual a interpreto tem mais de 30 anos. Ainda assim, ambos tratam, cada um à sua maneira, de um processo de renovação acelerada que dialoga fortemente com os dias atuais. São décadas marcadas por uma ansiedade coletiva diante da iminência de grandes rupturas — décadas em que, apesar do movimento vertiginoso, nada parece efetivamente sair do lugar.

Como discuti no artigo Esquerda, pós-modernidade e pauta identitária, Harvey estabelece um marco histórico entre o modernismo e o pós-modernismo, associado à crise do fordismo e à Crise do Petróleo, na década de 1970. A partir desse raciocínio, ele demonstra como o neoliberalismo se expandiu promovendo a desorganização das institucionalidades, das regulamentações, das relações sociais e do mundo do trabalho, além de criar novos hábitos e comportamentos.

Naquele artigo, analisei como a chamada pauta identitária reflete essa condição na luta política, pulverizando-a em causas isoladas que concorrem entre si e negando a universalidade. Retomo agora essa reflexão, partindo do livro de Harvey, para pensar como a lógica fragmentária e caótica da pós-modernidade se manifesta tanto na vida urbana quanto nas expressões culturais.

O modernismo, segundo Harvey, foi “um fenômeno urbano em larga escala, ligado ao crescimento explosivo das cidades, à industrialização e à mecanização”. A estética industrial, baseada na repetição e na padronização, contaminou o design, as artes e o consumo. As infinitas possibilidades da produção em escala criaram estímulos contínuos, levando também à objetificação e à instrumentalização das relações humanas.

Sob esse prisma, Harvey analisa a mentalidade social. Escrito na década de 1990, o livro aborda principalmente os efeitos da televisão. No entanto, em tempos de redes sociais, sua análise permanece atual. O autor afirma que, na era da televisão de massa, emerge “um apego às superfícies em vez das raízes, à colagem em vez do trabalho em profundidade, a imagens superpostas em lugar de superfícies trabalhadas e a um sentido decaído de tempo e espaço, em vez do artefato cultural solidamente realizado”.

O vídeo e a música que relaciono a essas ideias ilustram bem essa percepção: parecem construídos a partir de colagens, sobreposições de imagens e sons, cortes abruptos e ausência de uma narrativa linear. A letra aborda um triângulo amoroso, conflitos emocionais e incertezas — tudo apresentado por meio da repetição, do ritmo e da simplicidade.

Há, no entanto, uma orquestração harmoniosa dessa mistura caótica. Algo quase como uma sinfonia da metrópole[2], de tom quase angelical, trazendo uma dimensão existencial da vida urbana.

A mesma banda tem ainda outra música cujas sutis diferenças na voz e nos arranjos são suficientes para criar outro clima. Refiro-me a Blue Monday, nada etérea, muito mais dura e distorcida. Ambas, porém, revelam a fragmentação e a impessoalidade da etapa histórica em que se inserem.

Enquanto Bizarre Love Triangle remete ao fluxo das cidades — ruas, avenidas movimentadas, transporte, pessoas de todo tipo, instantes efêmeros e solidão —, Blue Monday evoca espaços fechados: a fábrica, a oficina, com repetições sufocantes que lembram linhas de produção. Seu próprio nome remete ao cotidiano do trabalho, à “segunda-feira triste”.

As estéticas das duas músicas incorporam elementos das novas tecnologias de comunicação. É difícil não lembrar da página inicial do Google ao assistir ao vídeo oficial de Blue Monday. Da mesma forma, é inevitável associar as redes sociais — com seus pedaços de comunicação espalhados em grandes mosaicos — ao assistir ao vídeo de Bizarre Love Triangle. Coincidência? Cópia? É mais do que isso.  As músicas e seus vídeos sugerem que lidamos há muito tempo com a mesma ideia de modernidade, constantemente reapresentada como se fosse nova, radical e inédita.

Harvey situa o limite do pós-moderno a partir da década de 1970, e essas músicas ilustram sua tese. Elas antecedem, porém, uma outra virada histórica: o fim da Guerra Fria. Estão ainda enraizadas a um contexto típico dos anos 1980, marcado pela ordem bipolar e por disputas ideológicas.

Poucos anos depois, no início da década de 1990, a música eletrônica adquiriu um tom mais eufórico, ainda mais sintético e desvinculado de seu tempo e de seu espaço. Vale retomar aqui algo que discuti no artigo Connected e a modernidade que gira em torno de si, publicado em 2021.

Naquele artigo menciono o impacto que a queda do Muro de Berlim, em 1989, teve na cultura de massa e aponto que alguns autores “atribuem a esse evento a emergência de novos estilos, como o acid house, que surgiu não apenas como uma categoria musical, mas também como um modo de vida que se arrogava aberto, amistoso, tolerante e otimista, em contraponto ao pessimismo dark da década anterior. Por outro lado, era também marcado pela alienação, pela despolitização, pelo hedonismo e pelo uso de drogas sintéticas, como o ecstasy.”

A música pop caminhou, em grande parte, para um estilo mais “limpo”, antecipando novas estéticas tecnológicas, e para um tom mais festivo, em sintonia com a euforia inconsequente provocada pelo fim da Guerra Fria. São expressões menos “bizarras” ou “tristes”, que falam em conexão ou liberdade — como Freedom! ’90, de George Michael, um marco da cultura pop com um nome pra lá de sugestivo — justamente porque, como já apontado, mais alienadas e despolitizadas.

David Harvey conclui que “o pós-modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado”. Segundo ele, “passamos para uma nova era a partir do início dos anos 1960, quando a produção da cultura tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética urgência de produzir novas ondas de bens com aparência cada vez mais nova, em taxas de transferência cada vez maiores, passou a atribuir uma função estrutural essencial à inovação e à experimentação estéticas”.

O movimento acelerado de inovação na estética e na forma, entretanto, pode induzir ao erro. Ele cria a falsa impressão de que a sociedade vive imersa em profundas transformações e em uma ruptura constante. Como vimos, a música pop de décadas atrás já dialoga com o mundo da desinstitucionalização e das novas tecnologias. Apesar de todo o barulho que produz, não se trata de mudanças que atinjam a estrutura social. Não são transformações políticas, tampouco de classe.

Carolina Maria Ruy é jornalista e pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical, editora do Rádio Peão Brasil e membro do Conselho Consultivo da Fundação Maurício Grabois.

[1] HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

[2] Há um documentário chamado São Paulo, a Symphonia da Metrópole, dirigido por Rodolpho Rex Lustig e Adalberto Kemeny, lançado em 1929.

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