PUBLICADO EM 25 de maio de 2022
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Por uma sociedade onde a generosidade seja a regra e a maldade exceção

Por Marcos Aurélio Ruy

A sociedade brasileira parece estar amortizada com tamanha naturalização da violência e da desigualdade, que cada vez se aprofunda mais. Com a diferença, agora, de ter sido descoberto, por setores da burguesia, o verdadeiro “Exército de Brancaleone” do Padre Júlio Lancellotti, em São Paulo, e de muitas entidades espalhadas pelo país distribuindo mais do que cobertores e comida em suas ações para impedir que pessoas morram de frio ou fome. Distribuem afeto.

Chamam a atenção para a caridade, tão necessária neste momento perverso pelo qual passa o país. Mas esquecem de debater sobre as causas da profunda desigualdade social. Obviamente não lhes interessa discutir a desigualdade em si, mas apenas amenizar os extremos para continuar tudo como está.

Como na música do grupo As Meninas, ao analisar “essa cadeia hereditária”, é preciso se “livrar dessa situação precária, onde o rico cada vez fica mais rico. E o pobre cada vez fica mais pobre”. E porque isso acontece, não explicam. Prendem-se à ideologia da meritocracia e individualizam as ações. E isso naturaliza a desigualdade e o pobre fica cada vez mais pobre, sonhando em ficar rico.

Na verdade, não é somente o Brasil a enfrentar uma crise humanitária sem precedentes. O mundo inteiro assiste à concentração de renda cada vez mais em poucas mãos. E, ao mesmo tempo, a miséria e a fome se espalham pelo planeta com tamanha voracidade vitimando milhões de pessoas, sem ter o que comer e onde morar com decência.

A ONG Oxfam apresenta dados, em sua mais recente pesquisa “Lucrando com a Dor”, que revelam o problema. Pelo levantamento em 2020, em plena pandemia, a desigualdade avançou com uns poucos ganhando muito com a desgraça de milhões. Há dois anos havia 2.668 super-ricos no planeta, que detinham em suas mãos 13,9% do PIB global, segundo a ONG. Isso numa população superior a sete bilhões de pessoas.

Para o historiador e pensador Eric Hobsbawm (1917-2012), a crise de 2008 é, para o capitalismo, similar à queda do Muro de Berlim, em 1989, para o socialismo. Já se passaram quatorze anos e a crise só se aprofunda e os ricos ainda se tornam cada vez mais ricos enquanto os pobres se tornam miseráveis, sem trabalho, sem renda, sobrevivendo da caridade, de catar latinhas, papel, papelão, de catar comida no lixo.

Famílias inteiras morando na rua porque a perversidade do capital as despejou e, mesmo durante a pandemia, não obstante a proibição disso acontecer; lembrando que a crise de 2008 começou com a falência do mercado imobiliário.

No Brasil, segundo uma projeção do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) havia, em 2020, 221.869 brasileiras e brasileiros morando nas ruas. Somente em São Paulo, a maior cidade do país, estima-se que mais de 35 mil pessoas estejam dormindo ao relento.

E mais uma vez a cultura ajuda a compreensão desse dilema. O documentário “Push: Ordem de Despejo” (2019), de Fredrik Gertten, mostra o trabalho de Leilani Farah, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre o Direito à Moradia, para denunciar a ação de grandes grupos econômicos na aquisição de habitações pelo mundo afora, expulsando as pessoas para lugares cada vez mais distantes de seus trabalhos e milhares para as ruas.

Esses grupos econômicos concentram toda a riqueza em suas mãos e detonam o planeta com a sua ganância. O filme de Gertten possibilita também entender como governos subalternos ao capital internacional, como o brasileiro, colaboram para a concentração de riquezas, a expansão da pobreza e a destruição ambiental, que prejudica todo mundo.

Como no filme “Não Olhe Para Cima” (2021), de Adam McKay, no qual, com a eminente destruição da Terra, os muito ricos fogem para outro planeta, em que há uma vida primitiva, portanto, com a possibilidade de tudo começar de novo e de destruir tudo de novo. Mas como a história não se repete, uma tragédia se vislumbra. O filme “Elysium” (2013), de Neill Blomkamp, mostra os muitos ricos numa confortável e avançada estação espacial, enquanto os mais pobres vivem o inferno na Terra.

O documentário “Ladrões do Tempo” (2018), de Cosima Dannoritzer, vislumbra como a tecnologia mal-usada prejudica milhões de pessoas. Mostra como os “donos do mundo” capitalista roubam o tempo de quem vive do trabalho, e como se trabalha de graça para essa gente quando se realiza alguma transação financeira pelo celular, por exemplo; o que tira emprego de muita gente, sem nenhuma contrapartida.

O curta “O Menino da Moeda” (2022), de Izah Neiva, mostra a insensibilidade causada por um sistema cada vez mais desumano, que naturaliza a violência e o descaso com a vida. Em pouco mais de 26 minutos, a obra reflete sobre como se chegou a tamanha perversidade com crianças vendendo balas ou esmolando em semáforos de trânsito.

Impossível não lembrar do clássico curta de Jorge Furtado “Ilha das Flores”, de 1989. Aqui o capitalismo é apresentado em toda a sua crueza, quando os famintos estão atrás até de porcos na fila para colher alimentos. Triste, mas real.

Óbvio que não são as novas tecnologias as culpadas pela crise do capital. Mas somente o acesso a elas, a toda a humanidade, pode fazer a civilização avançar para uma vida com dignidade, onde todas as pessoas possam viver e amar sem medo de ser felizes e sem nenhuma pressão sobre suas cabeças.

Além de assistir a esses filmes, se possível, é importante buscar o conhecimento através dos livros de vários estudiosos e pensadores e, dessa forma, compreender como a desigualdade foi construída por meio da instituição da propriedade privada e se aprofunda em um sistema profundamente excludente. No Brasil, com raízes na mentalidade escravocrata.

Com tudo isso acontecendo não podemos ficar na praça dando milho aos pombos como o personagem da música de Zé Geraldo. A luta neste momento é para eleger mais uma vez o presidente Lula e a maior bancada possível de mentes progressistas e democráticas para o começo da construção de um mundo onde a generosidade seja a regra e a maldade exceção.

Marcos Aurélio Ruy é jornalista

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