Na semana do 8 de março, uma reportagem sobre o número de “domésticas” resgatadas em “condição análoga a de escravizadas” apertou meu peito. O título refere-se aos “tiranos do século XXI”, que mantêm em suas casas meninas e mulheres que trabalham em troca de teto e comida. Algumas, sem direito a sair. Todas sem direitos trabalhistas. Apenas em 2021, foram 27 mulheres resgatadas. Quantas mais seguem nas mesmas condições?
Na leitura do texto, também me incomodou o uso da expressão “doméstica”, como se se tratasse de um tipo diferente de ser humano. No dicionário Michaelis, doméstica é “mulher que se emprega em trabalhos caseiros; empregada, criada”, enquanto doméstico é “concernente à vida da família; familiar, caseiro, íntimo”; o que se opõe ao estrangeiro, o animal “que vive ou é criado em casa; amansado, manso”. Apenas como quinta opção de definição aparece “aquele que, mediante salário, serve em casa de outrem; criado”.
Nessas definições está inscrita toda a nossa história de racismo, capaz de viabilizar a realidade de que algumas pessoas são “criadas” para o trabalho servil. Torna clara, também, a questão de gênero no trabalho em âmbito doméstico. São as mulheres que, em regra, realizam essa atividade. Lelia Gonzalez trata disso muito bem. Em um dos seus artigos, chamado “Cultura, Etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher”, depois de uma aula sobre as peculiaridades do capitalismo no Brasil, Lelia dá ênfase à importância da linguagem para a reprodução da lógica escravista. Desde o perverso requisito da “boa aparência” como forma de seleção de mulheres mais brancas ou mais jovens, especialmente para atividades que tenham contato com o público, até a força simbólica e concreta da palavra “doméstica”.
A “doméstica” viabiliza, com seu trabalho, a emancipação da patroa. Ainda assim, segue sendo socialmente considerada uma “cidadã de segunda classe”, expressão que tomo emprestada de Buchi Emecheta, uma autora africana que conta a sua história de mulher negra e pobre atravessada por tantas e tão diferentes opressões, em quatro livros imperdíveis. Voltando ao texto de Lelia, o uso do termo “doméstica” demarca um suposto lugar “natural” dessa mulher, confinando-a em atividades socialmente discriminadas, invisibilizadas e mal remuneradas. Naturalizando, como se vê na denúncia trazida pela reportagem que antes mencionei, a exploração escravista.
É preciso reconhecer a violência real e simbólica dessa linguagem, pois se trata de um poderoso instrumento de manutenção da dominação, que acaba sendo manejado, às vezes por ingenuidade ou falta de reflexão sobre a força das palavras. Mesmo quando é de denúncia que se trata, manter a linguagem do escravocrata, do machista, do explorador é contribuir para naturalizar uma realidade que deveria embrulhar nosso estômago, justificar manifestações públicas de repúdio, ampla divulgação midiática e forte resposta estatal. Nada disso aconteceu. 27 mulheres foram “resgatadas” em 2021. Houve notícias, em um dos casos até uma reportagem especial em um veículo importante de comunicação de massa, mas o fato é que seguimos nossas vidas. Talvez isso seja resultado da violência cotidiana a que temos sido submetidas, através de discursos e atos que fazem ode à violência contra as mulheres, como a fala recente de Arthur do Val sobre as ucranianas. Talvez estejamos anestesiadas. Certamente, estamos exaustas. Ainda assim, acredito na possibilidade de recuperar nossa capacidade de indignação.
E não se trata de fazer críticas pontuais, nem tampouco de apontar quais as melhores ou piores palavras para designar situações que não deveriam mais ocorrer, mas persistem, porque não conseguimos superar a lógica patriarcal e colonialista que ainda comanda as relações sociais, em especial as relações afetivas e de trabalho. Trata-se de propor um exercício cotidiano de espanto. Diante dos discursos presentes nas paqueras, nas piadas, nas notícias, nos diálogos dos filmes e telenovelas, buscar o estranhamento.
Em uma aula fantástica na semana passada, na UFRGS, refletimos sobre as indicações de brinquedos, nas consultas em sites de busca, para meninas e meninos. Uma busca rápida revela a cultura que reserva à mulher o espaço privado e o trabalho de cuidado; incentiva homens a buscarem a aventura dos espaços públicos, enquanto nega – como se simplesmente não existissem – todas as vivências que não se enquadram nesse padrão binário de definição da existência. Da mesma forma, as figuras dos banheiros públicos, destinados a serem utilizados por homens ou por mulheres, recalcam a figura de gênero e o papel social atribuído às mulheres, ao mesmo tempo em que excluem pessoas que não se inserem no padrão cisnormativo. Uma mulher trans que, em um shopping ou no seu local de trabalho, quiser simplesmente usar o banheiro, não encontrará lugar.
As palavras têm força.
Não por acaso Putin chama a guerra de “operação militar” e diz estar recuperando algo que lhe pertence. O presidente do Brasil invoca essa mesma guerra para insistir na mineração em terras indígenas, afirmando que isso é respeitar a “liberdade” dos povos originários.
No livro 1984, o ditador muda os nomes para ressignificar conceitos, chamando o Ministério da Guerra de Ministério do Amor. Por aqui, um Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos reproduz a cultura heteropatriarcal e atua em campanhas como a que incentiva abstinência sexual para meninas. A mudança nos nomes, para confundir o argumento, é um poderoso artifício de manipulação e poder.
A linguagem da dominação faz o mesmo: disfarça, naturaliza e recalca práticas de violência contra as mulheres, as populações originárias, as pessoas não brancas, as pessoas gordas, com condições de saúde diversa ou que não se enquadram no padrão imposto de sexualidade. Temos responsabilidade nisso e alterar nossa fala e escrita, desnaturalizando os símbolos que recalcam opressão, é um exercício importante.
Ninguém é “desligado” de um ambiente de trabalho, porque não estamos falando de máquinas. Não há “insegurança alimentar”, é de fome que se trata. Não há “média móvel de mortes”, existem pessoas morrendo, ainda, por covid19. Água não é comodite; floresta não é um bem ou mercadoria. Quem trabalha por comida não está em situação análoga a de escravizada: está sendo escravizada. Meninas não são “bonitas” porque sentam com as pernas fechadas. Meninos não são melhores porque engolem o choro. Nordestinos não são “cabeça chata”. Mulheres não são histéricas ou mal-amadas. Um homem que realiza tarefas em casa não está “ajudando” a mulher. Não existe “peso ideal”, nem “gordice”. Deixar de ser viado não é conselho. Algo ruim não é “programa de índio”. Quem está sendo investigado por uma conduta ilícita não é “bandido”. Uma coisa confusa não é “samba do criolo doido”. Não existe “cabelo ruim”. Tantos outros exemplos poderiam desfilar por aqui. Seria preciso um espaço maior apenas para fazer a lista mínima de expressões com as quais reforçamos cotidianamente esse padrão excludente de convívio social. Tenho certeza de que quem está lendo agora esse texto recorda de outras, muitas das quais talvez tenha sido alvo.
Essas palavras ferem. Negar-se a proferi-las, buscando outras formas de expressão é um compromisso importante. Há uma potencialidade concreta e revolucionária no discurso.
Quando começamos a realizar essa desnaturalização e a denunciar o que as palavras escondem, impressiona a quantidade de violência nelas contida e a força concreta dessa violência sobre todas nós. Não se trata de uma experiência fácil, já aviso. Acabamos caindo em ciladas. Esses dias, encontrei em um artigo que escrevi há vários anos, a expressão “mercado negro”. É preciso praticar a generosidade também em relação a nós mesmas. Ainda assim, é urgente tentar. Revelar o estranhamento a quem nos fala. Estar atentas a nossa forma de escrita. Adotar um outro modo de comunicação. Isso é revolucionário. Nesta semana do 8 de março, que tal começarmos por abandonar a expressão “doméstica”, para referir as trabalhadoras que realizam atividade de cuidado remunerado?
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.