“Vossos peitos, vossos braços
São muralhas do Brasil”
(Hino da Independência)
Em uma época na qual a maior parte do povo brasileiro era formado por pessoas escravizadas, nossa independência foi declarada pelo príncipe e teve como tema um hino em que a palavra liberdade insiste em se repetir: “Brava gente brasileira! Longe vá, temor servil. Ou ficar a pátria livre. Ou morrer pelo Brasil”.
Ninguém morreria de fato naquele 7 de setembro de 1822, dentre os que bradavam independência. Muito provavelmente nem grito houve. A elite brasileira escravista estava apaziguada, com a promessa de uma composição política que viabilizaria a transição, sem afetar os negócios. Portugal foi generosamente indenizado. Todos contentes cantando “do universo entre as nações, resplandece a do Brasil”.
A morte precoce seguia reservada aos trabalhadores e trabalhadoras escravizadas. Mesmo quando Dom Pedro deu o golpe que fechou a assembleia constituinte, em 1823, e formou um Conselho de Estado para redigir a Constituição de 1824, os interesses econômicos foram preservados. A escravização só foi abolida oficialmente em 1888 e a política pública destinada aos negros e negras foi de perseguição penal e exclusão social. Em 1889, outro golpe de Estado depôs o imperador e deu início à República.
Dom Pedro I era absolutista, mas proclamou nossa independência. Deodoro da Fonseca era monarquista, mas proclamou a República. Em período mais recente, políticos alinhados à ditadura civil-militar, que assinaram o AI-5, como Antônio Delfim Neto e Jarbas Passarinho, seguiram atuando na vida política democrática: o primeiro como deputado constituinte; o segundo como ministro no governo de Fernando Collor.
Isso mostra muito sobre a matéria de que somos feitos.
A Constituição de 1988, cujo texto tem a pretensão de expurgar essa herança maldita, sobrevive com dificuldade. Nela, o Brasil declara-se uma sociedade fraterna e solidária, fundada na preservação da dignidade e nos ditames da justiça social. Não há autorização para escravizar e a tortura é considerada crime inafiançável. Parecia que finalmente estávamos próximos de construir uma nação, soberana e menos desigual: “Já podeis, da Pátria, filhos; ver contente a mãe gentil”.
Entretanto, os anos que se seguiram foram de timidez e silêncio diante da nova ordem. Aos tropeços, com acordos e alinhamento de uma elite que segue escravista, obtivemos algumas vitórias e amargamos várias derrotas em relação à efetividade da racionalidade constitucional.
Em 2018, 30 anos depois da promulgação da Constituição, elegemos alguém que cita e admira Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar condenado pelo crime de tortura. Eis o passado de volta, onde ele sempre esteve, mas desta vez sem disfarce.
O governo de Bolsonaro é também o tempo da pandemia da covid-19. O resultado é um trauma coletivo de proporções profundas, que ainda custarão muito para serem assimiladas e superadas. Alvos de uma política já rotulada de genocida ou suicidária, fomos lançados ao adoecimento e à morte, pela deliberada opção de não comprar vacina em 2020, pelo incentivo às aglomerações, mas não ao uso de máscara.
A imitação debochada feita pelo presidente, em uma de suas lives, da sensação de sufocamento, certamente experimentada por parte das mais de 20 milhões de pessoas já infectadas, das quais 600 mil morreram e outras tantas ainda se recuperam de sequelas graves, é talvez a cena mais emblemática dessa violência brutal. A banalização da morte, sem consequência política alguma, desnuda o pacto colonial escravista, que ora é feito de silêncio, ora é recheado de som e fúria, mas sempre pressupõe a descartabilidade das vidas de quem não dita as regras do jogo.
É o que permite que se repitam situações como a de Raiana Ribeiro, espancada brutalmente pela patroa, em Salvador. As imagens do vídeo publicado na última semana, somam-se àquela de João Alberto Freitas, cuja morte por espancamento também foi filmada. Raiana e João Alberto pertencem à maioria do povo brasileiro, para a qual o “temor servil” é ainda a regra para a sobrevivência física, diante do patrão ou da polícia. A imagem de seus corpos violados não causa repulsa ou comoção social. A vida segue, sob uma ordem que insistimos em caracterizar como democrática. Mesmo com nossas entranhas à mostra.
Amanhã, dia 7 de setembro de 2021, fará 199 anos da declaração de independência de um país que ainda precisa caminhar muito para poder cantar a “pátria livre”. Nos últimos dias, as ocupações dos hotéis em Brasília e as inúmeras mensagens veiculadas em mídias sociais dão conta de um movimento cuja pauta não se sabe bem o que contém. Alguns falam em fechamento do STF; outros, no retorno da ditadura militar. As instituições já se manifestaram, ninguém parece apoiar a pantomima. Mas, concretamente, ninguém toca no presidente e ele segue insuflando seus seguidores.
Recentemente afirmou: “quem quer paz, se prepare para a guerra”. Nisso, precisamos admitir, ele tem razão. Pois, “paz sem voz, não é paz, é medo”.
Com ou sem fascistas gritando nas ruas dia 7, a verdade é que a guerra contra quem vive do trabalho está deflagrada, e faz tempo, talvez desde a primeira Carta Régia, que autorizava a escravização das índias e índios quando capturados. E foi a tônica da relação da classe dominante com o povo brasileiro desde as capitanias hereditárias.
Dela são vítimas, hoje, todas aquelas pessoas, cujas vidas têm sido duramente atingidas por uma política que só é de austeridade para pobres, por decisões judiciais que condenam trabalhadores humildes a pagar despesas de processo, por leis que autorizam uso de veneno na comida, por gestões que entregam empresas estratégicas ao capital privado.
Faz tempo que tememos o que será o amanhã. Quem vive do trabalho, quem luta por democracia, quem batalha por uma sociedade sustentável sabe disso.
A quebra do pacto de convivência que firmamos em 1988 se materializa na ausência do Estado, no desmanche de direitos trabalhistas, na crise hídrica não evitada, no desmatamento recorde, no aumento abusivo do valor dos itens indispensáveis à sobrevivência. Essa é a verdadeira guerra contra o povo brasileiro. Para enfrentá-la, não basta a declaração entusiasta de que defendemos a democracia. Não se trata de um conceito abstrato, mas de uma realidade concreta. Não há democracia sem direitos sociais e é sobre isso que nossas instituições precisam firmar posição e tomar atitude.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.