Trabalhar sem proteção social durante a vida laboral e não se aposentar na velhice é a condição de vida predominante para mais de 23 milhões de brasileiros e brasileiras que trabalham como autônomos ou conta própria.
Sem participação previdenciária contributiva, ficam excluídos do acesso à seguridade e previdência social. Isso significa que não terão assistência e renda caso adoeçam ou ocorra algum infortúnio que os impeça de trabalhar e, diante do afastamento definitivo, ficarão sem proteção previdenciária.
Nos dois últimos anos, o desemprego, que já atinge mais de 13 milhões de trabalhadores e tem longa duração, levou muitas pessoas a buscarem o trabalho autônomo ou por conta própria para poder se sustentar.
No boletim “Emprego em pauta”, nº 8, de julho de 2018, o Dieese analisou as condições desses trabalhadores e constatou que quase ¼ do total dos “conta própria” – ou seja, 5,3 milhões de pessoas – têm menos de dois anos de atividade nessa ocupação. Desses, somente 23% contribuem para a previdência social, o que significa que 77% estão excluídos da proteção social, trabalham sem segurança diante do afastamento, não têm direito a auxílio-acidente, nem à licença-maternidade e, menos ainda, à aposentadoria.
A condição daqueles que estão há mais de dois anos trabalhando como conta própria não é muito diferente: cerca de 61% trabalham sem contribuição à previdência social e estão sem proteção alguma. A desproteção é a condição do trabalhador por conta própria!
Os rendimentos são baixos e desiguais: a renda média dos que estão há mais de dois anos no trabalho por conta própria é de R$ 1.685,00 e a dos que estão há menos de dois anos nessa condição é ainda 33% menor, correspondendo a R$ 1.133,00.
As desigualdades em função de gênero e raça ampliam ainda mais a disparidade nos rendimentos: um homem não negro, que trabalha como autônomo há mais de dois anos, tem, em média, rendimento de R$ 2.380,00; já uma mulher negra com menos de dois anos de trabalho autônomo recebe em média R$ 809,00, isto é, recebe cerca de 1/3 da renda dele.
A recente mudança trabalhista enaltece e fortalece esse tipo de situação ocupacional, estimulando os trabalhadores a viver por conta própria a nova modernidade do mundo do trabalho! Oferta-lhes os riscos e os infortúnios da vida laboral, sem proteção e sem vínculos de solidariedade e segurança que o sistema de seguridade social gera para quem dele participa.
Se todos contribuem, pode-se financiar, com o comprometimento dos participantes e a um baixo custo relativo, os riscos (acidente, doença, morte) que todos corremos e fazem parte da vida, bem como o apoio à maternidade, além da aposentadoria dos que trabalharam por longos períodos.
Esses sistemas de cooperação são construções sociais complexas, resultado de investimentos econômicos, políticos e culturais de longa duração, que requerem um Estado social comprometido com a proteção e a cultura da solidariedade.
A modernidade, no entanto, caminha no sentido contrário, valorizando a renda atual contra a poupança para proteção ou renda futura e desmontando o sistema de solidariedade e de seguridade social. Isso é uma bomba relógio armada contra as futuras gerações. A crise econômica, o desemprego, os baixos salários e o alto custo de vida pressionam dramaticamente os trabalhadores a defenderem a sobrevivência no curto prazo.
As políticas neoliberais cultivam o descompromisso do Estado com o bem-estar da sociedade, desqualificando a cultura previdenciária e incentivando o trabalho por conta própria, excluindo trabalhadores de uma participação contributiva e que possa protegê-los.
O Estado lava as mãos das próprias responsabilidades e, com isso, avança no ajuste fiscal, que reduz despesas futuras e elimina o direito de acesso à proteção. O Estado neoliberal é hipócrita, pois finge oferecer igualdade de oportunidades formais, que são destruídas objetivamente pelas desigualdades de condições – baixa remuneração, desinformação e falta de assistência, entre inúmeras outras dificuldades.
Não nos iludamos: o trabalho autônomo e por conta própria é uma característica estrutural do mercado de trabalho brasileiro e tende a crescer no país e no mundo. A reforma trabalhista oferece ferramentas para viabilizar esse crescimento.
O sindicalismo está desafiado a viabilizar a mobilização e a organização desses trabalhadores. Para isso, deverá se reestruturar para passar a representá-los na batalha pela constituição de instrumentos de proteção laboral e social, regulação das relações com os contratantes, adoção de procedimentos para defesa do trabalho que realizam e do ferramental que possuem e usam para realizá-lo (moto, carro, barco, caminhão), além da garantia de mecanismos de amparo em situações de vulnerabilidade.
Também será necessário conceber formas solidárias de proteção social e do trabalho, além de formular modelos de contribuição para financiá-las. São inúmeros os desafios para que essa parcela expressiva dos trabalhadores, que hoje vive desprotegida de representação sindical, conquiste direitos fundamentais.
Clemente Ganz Lucio é diretor técnico do Dieese
Fonte: Poder 360º