Há quatro meses, no dia da Consciência Negra de 2020, um crime ocorrido nas dependências de uma unidade do Carrefour de Porto Alegre chocou o país. João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças do mercado com a conivência de funcionários. Tudo foi filmado pelas câmeras de segurança.
Embalado pela comoção global provocada por uma série sangrenta de violências racistas nos EUA, que impulsionou o movimento Black Lives Matter, o Brasil reagiu ao crime do Carrefour. No dia seguinte a principal avenida de São Paulo, talvez do Brasil, amanheceu com os dizeres “Vidas Negras Importam” pintados no asfalto, em frente ao MASP. Foi um exemplo das diversas manifestações realizadas contra o Carrefour.
A morte de João Alberto compôs um quadro macabro que parecia definir um padrão de conduta baseado no desrespeito à vida. Conduta flagrada em diversos outros momentos, conforme registrou o jornal Brasil de Fato (“Racismo e morte no Carrefour são a ponta de um iceberg envolvendo multinacionais”, Marques Casara, Brasil de Fato, 21 de novembro de 2020).
Desrespeito não só à vida humana, mas também contra animais, como aconteceu em dezembro de 2018, no caso da cadela Manchinha, envenenada e espancada por um funcionário no estacionamento de uma das lojas da empresa em Osasco. “A rede de hipermercados também não socorreu o animal”, ressaltou o jornal.
Com o passar tempo os protestos, naturalmente, perderam força, assim como o constrangimento do Carrefour e sua disposição em responder à sociedade.
Eis que, no dia 24 de março de 2021, o Carrefour se tornou a 2ª maior empresa do varejo na América Latina, depois de comprar o Grupo Big. Suas ações, segundo relatou o jornal Valor Econômico, dispararam e fecharam em alta de 12,77% naquele dia.
Li com espanto esta notícia. Ela transportou minha memória para os crimes, que considero ainda recentes, e para todas aquelas manifestações contra a multinacional.
Não se trata de defender aqui que tal mercado deveria ter sido fechado. Isso implicaria na demissão de milhares de trabalhadores de diversas áreas. Mas quero propor uma reflexão.
Os protestos e pressões que se seguiram à morte de João Alberto foram importantes uma vez que renderam grande repercussão e obrigou os executivos da empresa a darem respostas. Quatro meses, entretanto, é muito pouco tempo para que possíveis mudanças tenham sido consolidadas e postas à prova. Além disso, e mais importante, está claro que o Carrefour não enriqueceu apenas neste período a ponto de se tornar a 2ª maior empresa do Varejo na América Latina. O Carrefour cresceu e avançou no mercado ao longo dos anos, enquanto sustentava (ou sustenta? Não sabemos) aquele padrão de conduta que, pelo menos nos casos que se tornaram públicos, embasaram ações violentas. Cresceu sob os pilares do mais radical capitalismo selvagem, a exemplo de diversas outras empresas, conforme pontuou o Brasil de Fato.
Isso foi possível uma vez que, se por um lado lado, somos acostumamos e até incentivados a criticar o Estado e a política, por outro, somos alienados das regras que orientam empresas privadas, tão presentes em nosso dia a dia. O fortalecimento do Carrefour nestas condições é, neste sentido, reflexo da segregação entre os cidadãos e o mercado. Protestos contra as expressões mais sórdidas da selvageria capitalista são críticas válidas, mas elas não alcançam o amago de uma estrutura que proporciona práticas de desvalorização da vida, que é, enfim, o amago do próprio capitalismo.
O que podemos e devemos buscar por ora, penso, mesmo que a revolução socialista não esteja no nosso horizonte, é garantir à sociedade civil poder de exigir, fiscalizar e denunciar abusos de toda a ordem, no setor público e no privado. Poder para valorizar grupos, sejam empresas ou qualquer tipo de organização, que de fato apresentem um perfil mais humanitário e de respeito à vida em detrimento daqueles que são indiferentes à morte.
Poder, pelo qual devemos lutar, mas que tem sido, pouco a pouco, subtraído de nós. Subtraído através da reforma trabalhista de 2017, através da extinção do Ministério do Trabalho, através da eleição de um presidente que compartilha dos mais nefastos valores do capitalismo selvagem.
Esta é a reflexão que quero propor. Uma reflexão sobre as contradições entre a morte de João Alberto e o enriquecimento do Carrefour. Em outras palavras, uma reflexão sobre exploração, abuso, alienação e lucratividade.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
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