“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia”
(João Cabral de Melo Neto)
Avalanche, tsunami, terremoto, furacão, queimada, seja qual for o fenômeno da natureza a ser comparado com o que se passa no Brasil, nenhum deles parece ser tão grave e nem tão cruel. Fosse Deus palpável e crível, estaríamos atribuindo à Ele a esteira de tormentos e flagelos que só se explicam ou pela ira divina ou então pela análise científica da economia, política e sociedade.
Usemos pois a segunda metodologia, infiel às crenças arraigadas desde ancestralidades distantes, porém carregada de conteúdos e desdobramentos concretos ou quase isso. A confluência entre crise capitalista, inovações tecnológicas, alto grau de concentração e centralização de riqueza e poder, desvario ético, luta de classes, conflito e competição acirradas, mídia de massas venal e manipuladora, fundamentalismos e extremismos de toda ordem, desigualdades gritantes e pobreza absoluta, fome, epidemias, num rol infindável de mazelas, injustiças e deformidades, criou em pleno século XXI um cenário e ambiente “apocalíptico”.
O caso brasileiro tem notadamente seus agravantes: após a derrota de Trump nos EUA, a outrora alvissareira nação tropical transformou-se no principal ou pelo menos no mais expressivo bastião do reacionarismo global. A ocorrência da pandemia apenas ratificou e radicalizou uma tendência sombria e periculosa que se desenvolvia a pleno vapor.
Em questão de uma mínima vaga de tempo, antecedida por um golpe político instrumentalizado pelas vias parlamentares, judiciais, midiáticas e militares (na retaguarda), o Capital – estrangeiro e local, apoiado por forte esquema montado pelos EUA – decretou não só o império do neoliberalismo voraz e insaciável como abriu porteiras para a reprise grotesca do fascismo.
O povo experimenta uma nova onda retrógrada conduzida por uma política implacável contra seus direitos mais elementares alimentando-se das migalhas da riqueza brutalmente apropriada e intoxicando-se com discursos e ideias toscos cuja eficácia chegaria a causar admiração, não fosse tragédia.
Mesmo distinto do modelo clássico, consagrado nos rigores acadêmicos e teóricos da Ciência Social, o fascismo tupiniquim é fenômeno poderoso. O seu caráter, sentido e funcionamento ainda merecem muitos estudos e não cabe aqui fazê-los, mas o fato é que deitaram raízes num solo receptivo à ele.
A “Morte e Vida Severina” do poeta João Cabral de Melo Neto ganhou, portanto, desenho e preenchimento redivivo, versão 2.0. A mortandade da COVID, o desemprego desesperador, a miséria generalizada, a fome de milhões, a rua como morada, se tornaram uma realidade comum e naturalizada.
Severa é a vida daqueles que tem a morte por companhia à espreita, quase como sentença. O revés civilizatório por qual passa o Brasil é escamoteado pela imprensa mundial e quando comparado aos flagelos sírios, iemitas, afegãos, somalis, haitianos, congoleses, enganam a vista descuidada.
Não! Nada disso! O que se opera no Brasil é a expressão ampliada de um projeto e intento modelar e modular tal qual foi a vanguardeira Ditadura Militar de 1964, triste inspiração para o ciclo autoritário e genocida que dominou a conjuntura latino-americana nos anos seguintes.
Derrotar o atual governo de Jair Bolsonaro é a tarefa primeira. Coincide com a segunda exigência, essa temporal e politicamente mais demorada, a de refutar também o neoliberalismo. Tal como corvos, aproveitam o momento para impor uma agenda e uma estrutura completamente negacionista aos princípios de bem-estar social, soberania nacional e desenvolvimento inclusivo.
Preconiza a tática política derrotar um inimigo por vez quando se encontra em defensiva. É fato. Mas não se recomenda enganar-se com as próprias ideias e objetivos, dado a degradação da vida do povo. Ou ratificaremos o horror como bálsamo frente ao terror. Unidade e amplitude para enfrentar e superar o pior dos piores, mas tenência para não cair nas armadilhas daqueles que permitiram o descalabro desses tempos.
Alex Saratt é professor de História nas redes públicas municipal e estadual em Taquara/RS, vice-presidente estadual Cpers-Sindicato e Secretário de Comunicação da CTB-RS.