A virtualidade da justiça não é novidade. Quando o PJe iniciou em 2010, escrevi sobre a ironia de termos justiça itinerante (barcos conduzindo servidores para realizar audiências em comunidades ribeirinhas) e estarmos preocupados em informatizar tudo. A elitização que resultou desse processo não é seu pior efeito. Tem todo o lixo eletrônico e/ou o problema da alocação do investimento público, que falta em outras frentes.
O PJe permite trabalhar de casa, inclusive sábados, domingos e feriados. Não pára nunca. O número de servidora(e)s adoecida(o)s, inclusive por doenças psíquicas, aumentou assustadoramente nos últimos anos. Em razão do teto de gastos, quem se aposenta não é substituído. O trabalho é dividido entre os que ficam. A agilidade na prestação jurisdicional não aumenta. O volume de trabalho sim. A distância entre advogados, servidores e jurisdicionados também.
Com a pandemia, ao esgotamento físico e mental somou-se a dor da perda e a angústia do isolamento. Audiências passaram a se realizar de modo virtual. Uma medida emergencial que logo foi incorporada como o novo passo da virtualização da justiça. Ao ajuizar uma demanda trabalhista, o sistema automaticamente faz a escolha. É preciso clicar para desmarcar a opção, caso se queira audiência presencial. (A propósito, pedi ao editor do Espaço Vital que negritasse estas duas frases para chamar a atenção).
Na portal do CNJ, a explicação: justiça 100% virtual é a “possibilidade de o cidadão valer-se da tecnologia para ter acesso à Justiça sem precisar comparecer fisicamente nos fóruns”. Um novo tempo, mais acesso e comodidade. A participação nas audiências pode (e isso tem sido feito) ser realizada durante o trabalho, no aeroporto, no trânsito, enquanto o almoço é feito.
Essa aparente vantagem pode tornar-se um problema. A virtualidade da audiência – assim como o PJe – não é apenas uma forma de realizar a justiça. É um novo modelo de Justiça, com outra dinâmica e muitas implicações. Afetos não circulam do mesmo modo em ambientes digitais. Quem sofria com a necessidade incômoda de sentir cheiro de gente, pode se sentir seguro. Não precisa mais submeter-se ao convívio humano.
O olhar do Outro não está sobre nós como antes. Um clique nos devolve o silêncio e a solidão de nossos espaços de trabalho, dentro de casa. Isso implica pensar e atuar de modo diferente nos processos. É certo que existem vantagens. Podemos aproveitar ao máximo o tempo, desconectando de uma audiência para entrar em uma aula e acompanhar uma reunião. Tudo ao mesmo tempo agora.
Mulheres, conseguimos cozinhar e/ou acompanhar os temas das crianças, enquanto trabalhamos. Mas também existem problemas. Entre eles a exaustão mental, que tolhe espaço e disposição para o estudo, reflexão crítica, inclusive sobre o modo como a justiça (não) vem sendo prestada.
Além disso, o olhar do Outro nos constitui. É na humanidade do Outro que construímos nossa capacidade de empatia. A Justiça do Trabalho já está em sofrimento pela dificuldade estrutural que se tem de compreender trabalhadora(e)s como seres dotados de dignidade e titulares de cidadania. A mais nova proposta de destruição de direitos trabalhistas, apresentada pelo GAET, está aí para provar isso.
Virtualizar a Justiça tornará ainda mais fácil negá-la. Especialmente para agentes sociais esgotados com tanta conexão. E antes que me acusem de resistir injustificadamente à modernidade (uso esse termo de modo proposital), já respondo que resistir nem sempre é sinal de velhice ou obtusidade.
Muitas vezes é o único modo de seguir existindo!
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.