Sob o manto da liberdade de expressão e da imparcialidade o país é assolado pelas pragas dos “ismos”: negacionismo, fundamentalismo, obscurantismo, fascismo. A publicação do artigo do antropólogo Antônio Risério “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo” pelo jornal Folha de São Paulo se equivale, em teor e propósito e guardadas as devidas diferenças, ao malfadado editorial de outro jornalão paulista, O Estado de São Paulo, quando da disputa do 2° turno das eleições presidenciais brasileiras em que classificou a disputa entre Haddad e Bolsonaro como “uma escolha difícil”.
Por óbvio, como anotado anteriormente, a magnitude e o impacto de ambos é diferente, mas o texto dominical na Folha indica que daqui pra frente a coisa toda tende a piorar, sinal de que o processo eleitoral – que não é só um evento político, mas a expressão de concepções de vida em sociedade – terá lances dramáticos e trágicos às pencas.
Sobre o texto e as ideias em si, é preciso duas ordens de reflexões. Aceitando o terreno de luta proposto pelo articulista há um vasto conjunto de debates a serem tratados. Se é verdade que – como qualquer tema da ciência – é possível fazer a crítica ao identitarismo, também é lícito fazer a crítica da crítica ao identitarismo.
A nomenclatura identitária é, primeiramente, atribuída de modo equivocado. O identitarismo é por si uma vertente liberal, burguesa e capitalista que incide e disputa espaço e hegemonia no seio do movimento social. As pautas relacionadas ao racismo, machismo, xenofobia e (mais recentemente) homofobia são anteriores ao fenômeno político e sociológico.
Aliás, na construção de seus princípios e perspectivas, a rigor toda causa, movimento e organização precisa também definir sua identificação. Mas no caso do identitarismo contemporâneo, o que se coloca é a primazia do sujeito e seus direitos individuais em relação ao conjunto das relações sociais de dominação, opressão, exploração e exclusão.
A visão identitária transforma a existência social inclusive em produto, mercadoria, objeto vulgar. Vender a identidade como imagem e discurso faz bem à burguesia. A mesma emissora que narra com tranquilidade que a polícia invadiu uma favela e matou 25 traficantes (todos negros), sem questionar uma vírgula, depois noticia indignada um caso de racismo no shopping. Usa da sexualização da mulher negra e coloca uma apresentadora também negra no telejornal.
Esse jogo de bate-assopra, esse relativismo, essa abordagem piedosa, longe de questionar o sistema, a estrutura, a história, apenas ratifica a lógica de compensação e reparação parcial e limitada das injustiças, desigualdades e inferiorizações. Ao não tratar das contradições fundamentais da economia é sociedade, se cria algo similar aos partidos populares reformistas ou aos sindicatos conciliadores.
Porém, a crítica da crítica ao identitarismo deve ser feita. Certos setores progressistas passaram a classificar toda e qualquer manifestação setorial como negativa, fragmentária e divisionista. Erro crasso. A história nos mostra que concomitante às lutas e organizações classistas, socialistas e revolucionárias sempre houve e coube a admissão e articulação das causas de mulheres, minorias étnico-raciais, juventude, nacionalidades, etc. O capitalismo soube explorar as diferenças e singularidades de modo a conservar seu controle sobre as massas e, de outra parte, as vanguardas também conseguiram unificar a luta geral com as lutas específicas, potencializando-as.
No tocante aos argumentos do antropólogo, a discussão é outra. Em sua infeliz abordagem, eivada de má-fé, senso comum e demagogia, Antônio Risério ignorou solenemente o passado escravocrata, as condições concretas da liberação dos escravizados, a complexa e violenta estrutura do racismo (desde a violência física e cultural, passando pela jurídica e institucional, incluindo a econômica e política) e quis comparar episódios isolados e pontuais com o sistema funcional e ativo que massacra e pune a população afro-brasileira.
Comparar situações assimétricas, menosprezar dados estatísticos contundentes, silenciar sobre casos notórios de racismo, dizer que a violência policial ou a ocupação de vagas nas escolas e universidades atingem negros e brancos de modo semelhante. Mentira em cima de mentira, como convém à Casa Grande. O grosseiro revisionismo não se sustenta fora dos círculos do próprio racismo e é deplorável ver um órgão de imprensa de alcance nacional dar guarida a tamanho disparate.
Aos homens e mulheres de sã consciência e comprometidos com a construção de um país livre, justo, igualitário, o repúdio ao artigo neorracista de Risério é exigência ética, política e ideológica inconteste. No quadro de guerra cultural e nas vésperas da mais árdua disputa político-eleitoral desde o fim da Ditadura Militar, se posicionar de forma firme e determinada quanto ao episódio e tema ajuda a combater um dos gargalos históricos e sociais que explicam o Brasil e seus desafios.
Toda a solidariedade aos negros e negras brasileiros. Nenhuma tolerância ao racismo. Pela criminalização dos discursos e ideólogos racistas. Por políticas de promoção da igualdade racial. Por um governo responsável pela erradicação das desigualdades raciais em todos os aspectos da vida social. Fora Bolsonaro! Racistas, Fascistas, não passarão!
Alex Saratt é professor de História nas redes públicas municipal e estadual em Taquara/RS, vice-presidente estadual Cpers-Sindicato e Secretário de Comunicação da CTB-RS.