Por Igor Felippe Santos
O presidente Jair Bolsonaro viveu o pior momento do seu governo em 2021 e conseguiu, sob trancos e barrancos, atravessar o deserto da pandemia, da crise política e da deterioração das condições de vida da população. Conduziu a guerra e a paz em torno de uma crise sem precedentes, com ataques ao STF (Supremo Tribunal Federal), instrumentalização das Forças Armadas e controle sobre o Congresso Nacional, atuando como tutor de um regime político instável.
Com a vela para a guerra, manteve uma cruzada em defesa do voto impresso, que mobilizou seus apoiadores, radicalizou o enfrentamento contra as “instituições” , alimentou o medo de um golpe de Estado e neutralizou as ameaças do STF. Com a vela para a política, fez mudanças no governo, fortaleceu a articulação no Congresso Nacional, consolidou procedimentos para negociar diretamente com os parlamentares, dividiu os partidos, penetrou nas bancadas e construiu uma base política para a eleição presidencial de 2022.
As manifestações de 7 de setembro convocadas por Jair Bolsonaro marcaram o auge da crise institucional que colocou o presidente, com o beneplácito das Forças Armadas, contra o “establishment”. O Brasil dormiu sob o que muitos acreditavam ser a iminência da abertura do processo de impeachment, com lideranças políticas com influência no Congresso Nacional acusando os ataques de Bolsonaro. Tudo mudou em 9 de setembro, com a divulgação do texto intitulado “Declaração à Nação”, assinado pelo presidente, que jogou um balde de água fria na fervura.
Daquele dia em diante, o país passou a viver tempos de maior estabilidade institucional, com um armistício com o STF e um maior controle do presidente sobre o Congresso Nacional. Houve um acordo de “deposição de armas”, que não se conhece os termos, mas que riscou o chão. Ao encerrar a campanha do voto impresso, neutralizou as iniciativas da Corte em oposição ao governo e em relação aos processos que envolvem a família.
A cruzada do voto impresso
O escrutínio da condução das políticas do governo da pandemia, com a instalação da CPI da Covid-19 a mando do STF, em um momento de números assustadores de mortes e da lentidão para vacinação, colocou no centro da política o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.
A desmoralização do homem que sintetizava a associação de Bolsonaro e Forças Armadas gerou um espírito de corpo que criou um sombreamento entre ambos, bastante funcional para circunscrever a crise sob o temor de um golpe. A partir desse impulso, Bolsonaro lançou a cruzada contra o sistema eleitoral eletrônico.
Militares da ativa e da reserva passam a se pronunciar, em notas, cartas e entrevistas, tanto em relação à CPI da Covid como em relação ao voto impresso. Houve até uma carta assinada pelo ministro da Defesa Walter Braga Netto e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, considerada uma ameaça à comissão.
O clima esquentou com reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”, que reportou que Braga Netto teria enviado por meio de um interlocutor uma mensagem ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), comunicando que não haveria eleições em 2022 caso o voto impresso não fosse aprovado.
Foi nesse clima que o Arthur Lira colocou para votar a PEC do Voto Impresso. A proposta entrou na pauta de afogadilho, de acordo com a imprensa, em uma manobra do presidente da Casa para obstruir a articulação do governo pela aprovação do texto. Bolsonaro e Lira mediram forças na disputa pelo controle da Câmara.
No mesmo dia da votação, as Forças Armadas fizeram um desfile militar de tanques e armamentos, patrocinado pelo governo, na Esplanada dos Ministérios, passando em frente ao Congresso Nacional, que foi considerado mais uma ameaça. O STF se omitiu com medo do descumprimento de uma decisão contrária.
O governo fez um esforço extraordinário para conquistar o maior número de votos. Por outro lado, Arthur Lira operou pela rejeição da PEC, que dependia de 308 votos favoráveis. O placar final deu 229 votos favoráveis, 218 contrários e 1 abstenção. Um projeto que expressava a luta ideológica de Bolsonaro contra o sistema eleitoral e a democracia brasileira dividiu a Câmara dos Deputados. As bancadas da maioria dos partidos saíram estilhaçadas. Nessa disputa, o bolsonarismo penetrou na “oposição” de direita (PMDB, PSDB e PSD) e até na centro-esquerda (PDT e no PSB).
O STF estava no fundo da crise do governo federal contra o Congresso Nacional. A Corte tinha imposto a instalação da CPI da Covid, sob protestos de Rodrigo Pacheco, que fora eleito presidente do Senado com apoio do governo. Além disso, ministros tinham deixado a digital nas articulações na Câmara contra o voto impresso. Bolsonaro manteve por meses a tensão com o STF, chegou a xingar o ministro Luís Roberto Barroso. Além disso, apresentou o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes.
O casamento com o centrão
A guerra de Bolsonaro contra o STF e a CPI da Covid-19 no Senado Federal, em um momento de deterioração das condições políticas do governo, implicou a construção de uma base na Câmara dos Deputados e na consolidação de procedimentos para neutralizar um pedido de impeachment e deslocar os parlamentares para um posição de apoio do governo.
Esse movimento começara em 2019, quando o governo abriu mais espaço para o chamado “centrão”, composto pelos partidos de direita mais pragmáticos e fisiológicos, ampliando a influência do ministro Rogério Marinho, absorvendo no ministério Fábio Faria.
O segundo ato foi a operação política para garantir a eleição para a presidência de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) no Senado, com a nomeação de cargos e liberação de emendas. Com isso, enfraqueceu o campo de direita liberal mais independente no Congresso, que tinha como fator de unidade o então presidente da Câmara Rodrigo Maia.
O terceiro capítulo foi a reforma ministerial de março, que abriu ainda mais espaço para o centrão e colocou em postos chaves de poder figuras de confiança do presidente, como o deslocamento de Braga Netto para o ministério da Defesa. Com a mudança, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica reagiram e ameaçaram abandonar os cargos. Diante disso, o governo anunciou a substituição.
Muitos analistas apontaram que Bolsonaro tinha perdido a queda de braço com as Forças Armadas e que estava fragilizada a sua referência sobre o comando dos generais. Outros apostaram que, com a troca, ele promoveria uma nova geração, com militares com menor autonomia política, que ficariam mais dependentes e fiéis ao governo. Foi o que aconteceu.
O assalto ao governo pelo centrão se consolidou no período de queda da avaliação positiva nas pesquisas de opinião, com os altos índices de mortos e contaminados da pandemia, lentidão no processo de vacinação e aprofundamento da crise social, com manutenção de taxas altas de desemprego e corte do auxílio emergencial.
No rastro da CPI da Covid-19, que tinha se transformado em uma arena concentrada de desgaste do governo, as forças populares retomaram as ruas com uma série expressiva de manifestações, a partir de maio. Os protestos ganharam densidade nas capitais e se espalharam por todo o país, sob o guarda-chuva da bandeira do Fora Bolsonaro e em defesa de uma política de renda para enfrentar a crise social e da aceleração da vacinação para controlar a crise sanitária.
A sombra do impeachment crescia, quando o casamento de papel passado de Bolsonaro e centrão se deu com a nomeação do senador Ciro Nogueira, presidente do PP, para o Ministério da Casa Civil. A partir daí, o núcleo dos partidos mais fisiológicos tomou a coordenação das ações do governo e das negociações com o Congresso Nacional, que estava nas mãos de Flávia Arruda, do PL, na Secretaria de Governo da Presidência da República.
Bolsonaro manteve a estratégia de aumentar seu controle sobre postos de poder da República, indicando seu fiel escudeiro André Mendonça para a vaga aberta no STF e propondo a recondução de Augusto Aras para o cargo de Procurador-Geral da República. O nome do procurador foi aprovado em 30 dias por ampla maioria no Senado, enquanto a indicação do ex-ministro foi adiada, mas se efetivou nesta semana. A maioria do Senado deu a cadeira na mais alta Corte do país ao “ministro terrivelmente evangélico”. Missão cumprida.
A virada do 7 de setembro
Bolsonaro se aproveitou do cerco ao governo para mobilizar seus apoiadores, dando um caráter épico para os protestos de 7 de setembro. Jogou as fichas e fez um teste da força política concentrada na guerra pelo voto impresso. Cobrou a fatura de apoiadores entre parlamentares, prefeitos, governadores, empresários, líderes de igrejas e comandantes do aparato de repressão, para dar uma dimensão de massa ao enfrentamento.
As manifestações se concentraram em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília e mobilizaram milhares de pessoas. Foram os maiores atos desde as manifestações pelo golpe do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Hordas bolsonaristas de verde e amarelo tomaram as ruas com um discurso radical, em defesa do impeachment de integrantes do STF e da instituição do voto impresso. O presidente, em cima de um carro de som na Avenida Paulista, voltou as artilharias contra o STF, ameaçou descumprir decisões judiciais e atacou Alexandre de Moraes.
Bolsonaro levou até às últimas consequências a guerra, mobilizou milhares de pessoas e radicalizou os ataques às instituições democráticas. O Brasil amanheceu em clima de estarrecimento. Todos os limites tinham sido ultrapassados. A reação foi forte e a tese do impeachment ganhou a boca de lideranças de PMDB, PSDB e PSD. O presidente do STF Luiz Fux fez discurso firme e falou de “crime de responsabilidade”.
A cena política brasileira mudou substancialmente em 9 de setembro, com a carta à nação escrita com a “assessoria” do ex-presidente Michel Temer, uma das velhas raposas da política brasileira, que fez também a interlocução com lideranças políticas, ministros do STF e empresários . “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes. A harmonia entre eles não é vontade minha, mas determinação constitucional que todos, sem exceção, devem respeitar”, diz o texto que desarmou o que parecia ser uma bomba-relógio.
Muitos consideram que o presidente teria recuado, mas desde então as condições da governabilidade melhoraram. Depois da crise mais grave da chamada “Nova República”, o STF silenciou, o Congresso manteve o processo impeachment nas gavetas e tudo continuou como se nada tivesse acontecido. As instituições fracassaram. Deixaram de cumprir seu papel para fazer um acordo.
A guerra ficou para trás, mas a política não continuou a mesma. O relatório final da CPI da Covid-19, que acusou o mandatário de nove crimes, não teve desdobramentos. Com a penetração do bolsonarismo nas bancadas, consolidou-se um tipo de governabilidade que prescinde dos partidos e se faz pela negociação direta com os parlamentares. É cada um por si e Deus por todos, como diz o ditado.
O novo regime bolsonarista
O amálgama desse modelo é a negociação de emendas, que chegou a um nível superior com a instituição do chamado “Orçamento Secreto”. A aprovação da PEC dos Precatórios em primeiro turno na Câmara dos Deputados, por 312 votos a 144 contrários, dividiu mais uma vez a maioria das bancadas, independente da orientação partidária. O sistema político-partidário faliu.
O STF decidiu suspender os repasses das chamadas “emendas do relator” (RP-9), cobrando transparência do Poder Legislativo. Ou seja, mandou colocar ordem na bagunça. O Congresso Nacional aprovou um projeto de resolução com regras para execução das emendas de relator, que mantém o sigilo dos parlamentares. Tudo resolvido.
O movimento aparentemente contraditório de conduzir a guerra contra as instituições, mantendo a coesão ideológica dos apoiadores, e de reorganizar a base política, absorvendo o centrão, chegou ao seu termo em 7 de setembro. A aposta no conflito aberto contra o sistema político-institucional, que muitos consideravam que levaria o presidente a sofrer um processo de impeachment, deu melhores condições para fazer o jogo político, porque tutelou aqueles que poderiam criar problemas.
Bolsonaro entrará em campo para a disputa de 2022 com uma coalizão política com maior envergadura para disputar as eleições, com a filiação ao PL e aliança com o PP. Minou os partidos da chamada 3ª via, que enfrentam dificuldades para impor uma candidatura e sofrem com as alas bolsonaristas no seu interior. Neutralizou as ações do STF que poderiam prejudicar sua candidatura e ameaçar seus filhos. Não se pode subestimar a força do presidente, que está rezando a vela da política, mas a vela da guerra continua acesa.
Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares. É apresentador do podcast Três por Quatro, do Brasil de Fato