PUBLICADO EM 19 de jun de 2021
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Guedes e Cristina assistiram O Poço para propor distribuir restos?

Um jantar brasileiro/Debret

Por Carolina Maria Ruy

Fazer doações pode ser um gesto nobre, mas é a imagem de uma desigualdade crônica. Afinal, quem dá tem de sobra, quem recebe, tem em falta. Doa-se de tudo: um trocado, um agasalho, restos de comida…

Dar um pedaço de sua comida por caridade, como as vezes damos para nossos insistentes cachorros que olham fixo enquanto comemos, me lembra aquele quadro “Um jantar brasileiro”, do pintor francês Jean-Baptiste Debret, de 1827. O famoso quadro mostra uma senhora branca à mesa farta, oferecendo a uma criança negra, sem roupa e no chão, um pedaço de sua comida.

Um quadro, quantas histórias! A começar pelo pintor que, como muitos europeus, veio ao Brasil, conhecer os hábitos, a natureza selvagem e disseminar sua cultura “civilizada”. Quando Debret pintou o retrato faltavam ainda 61 anos para o fim da escravidão. E ele pintou a escravidão como ninguém. Nos deixou um extenso registro daquele horror.

Daquela abolição meia boca de 1888, abolição sem solução, herdamos a divisão abismal entre quem tem de sobra e aqueles a quem sobra a falta.

Não é que foi exatamente sobre uma espécie de aceitação deste fato como algo natural que nossos ministros da Economia e da Agricultura bolaram o mais repulsivo e desumano programa de “distribuição” social? Paulo Guedes, aquele que reclamou de filhos de porteiros em universidades, apareceu agora com a novidade: “dar os restos de comida da classe média, que come demais, segundo ele, para pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados”. Tereza Cristina ainda complementou, defendendo que as datas de vencimento dos alimentos podem ser prorrogadas. Um lixozinho básico para os pobres. É a cara do governo Bolsonaro. Afinal, pra que resolver o problema da desigualdade com emprego e distribuição de renda se é muito mais fácil oferecer restos de comida e alimento vencido?

Aquele gesto captado por Debret evoluiu para isso. Será que hoje o pintor conseguiria captar o espírito desta engenharia da crueldade? Não temos como saber. O cinema, entretanto, com seus recursos e sua sinergia, apresentou em 2019 um filme que é a perfeita analogia desta situação esdrúxula. Só mesmo um filme descarado e indigesto como o Poço, do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, para simbolizar as ações deste desgoverno.

Embora eu já tenha feito uma crítica pela maneira como o filme retrata o comportamento dos mais pobres, reconheço que a estratificação social que ele mostra é pura expressão do capitalismo selvagem. O Poço se passa em uma prisão vertical, na qual os presos ficam ao redor de um poço por onde passa uma mesa de comida diariamente. Quanto mais alto o andar, melhor é a oferta de comida. Aqueles que ficam nos andares inferiores comem os restos daqueles que ficam acima. Vejam se não é exatamente a ideia que Paulo Guedes quer implementar.

Parece até que Gaztelu-Urrutia previu a proposta de Guedes e Cristina. Ou, pior, que os ministros assistiram o filme e tiveram essas ideias sobre um compartilhamento de resto de comida. Evidente que isso é apenas uma ironia com forte crítica política. O fio que amarra as pontas soltas deste texto, o quadro de Debret, a ideia de Guedes e Cristina e o filme O Poço, é a desigualdade perpetuada e aprofundada em nossa sociedade de mercado. Uma situação que, de tão batida e de tão bem preservada nos moldes do modo de produção capitalista, tende a parecer uma lei da natureza.

Fazer doações aos mais pobres é um gesto nobre e necessário. Mas precisamos olhar mais além e exigir que o Estado faça uma política distributiva justa em todos os níveis e não se limite a doar restos.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

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