PUBLICADO EM 30 de abr de 2018
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Falsos pretextos para um estado de exceção e a incompreensão dos direitos humanos

Por Carolina Maria Ruy

Vivêssemos em estado de normalidade política e espiritual, em que ideias, ainda que as mais bizarras, fossem parte de um grande debate social, democrático, acharia, com meus botões, em parte risível e no todo desprezível o texto do jornal O Estado de São Paulo, de 30/04, “A segurança e o politicamente correto” cujo subtítulo é “Os ‘defensores dos direitos humanos’ vão defender a liberdade dos assassinos de Marielle?” assinado pelo professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield.

No vale tudo instituído pelo medo que os financeiramente privilegiados têm de que as classes C e D continuem a frequentar aeroportos e universidades, entretanto, o texto é de dar medo. Soma-se ele o texto do mesmo Estadão, na mesma página, por sinal, do dia 22/04, chamado “A ditadura na academia e o golpe de 2018”, endossado pelo editorial de ontem (30) “Academia dominada”, no qual o professor Carlos Maurício Ardissone ressente-se do que classifica como “ambiente repressivo que, diariamente, constrange inúmeros professores liberais, aos quais é imposta uma lei de silêncio quase marcial, por causa do temor de possíveis retaliações”. Nada mais falso. Na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, por exemplo, professores que ideologicamente mais se aproximam de partidos o PSDB, por exemplo, dão o tom. Como se sabe tal partido não é de uma esquerda radical doutrinadora avessa ao “mercado”. Não são “professores marxistas-gramscianos” que expõe em suas aulas uma “impossibilidade de neutralidade axiológica”, como diz o texto. Professores como o sociólogo Brasílio Sallum Júnior, Wanderley Messias da Costa e o saudoso Antônio Carlos Robert Moraes, o Tonico, de quem tive a honra de ser aluna na faculdade de Geografia, por exemplo, são exemplos de formadores de destaque neste mundo acadêmico a que se refere Ardissone em seu texto. Sem falar do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, formado pela FFLCH.

Mesmo com sua clara posição à direita, por falta de melhor definição, o jornal O Estado de São Paulo, há que se reconhecer, preza pela qualidade de seus artigos. Trata-se de um informativo considerado “confiável”, com todas as ressalvas que lhe cabe. Por isso mesmo os textos citados, que não condizem com a qualidade do jornal, são amedrontadores. Mal comparando eles lembram aquelas tenebrosas previsões do tempo, que nada diziam sobre o clima, e tudo diziam sobre o ambiente político.

O artigo “A segurança e o politicamente correto” mais parece frases de algum imbecil que ganhou voz na rede social.

O texto fala que: “enquanto o crime é avassalador nas ruas das grandes cidades, temos ainda de aguentar o politicamente correto invadindo a mente de qualquer um. A insensatez e o seu correlato, a impunidade, terminam tomando conta da cena pública. A questão chega a ser inusitada, pois o politicamente correto termina por criar uma completa inversão de valores, respaldada numa suposta boa consciência que tem como objetivo impor-se a toda a sociedade”. Ou seja, ele considera que a criminalidade brota na sociedade por geração espontânea e que ela é natural e inevitável como a lei da gravidade. Desconsidera a situação social de falta de oportunidades para os jovens, que são obrigados e deixar as escolas e, ao não conseguirem emprego, são cooptados pelo crime. Como se ser criminoso fosse uma opção e não uma falta de opção.

Na sequencia defende que: “Bandidos e traficantes ostentam armas de grosso calibre em favelas ou fora delas, Brasil afora, e o politicamente correto conduz toda uma campanha de desarmamento do cidadão. Ou seja, o problema consistiria em armas supostamente em poder dos cidadãos de bem, que se tornariam, por curiosa inversão, os responsáveis indiretos pela criminalidade no País. O cidadão encontra-se desarmado, não tem mais nem o direito à legítima defesa, enquanto os bandidos exibem armamento de restrito uso militar, mostrando todo o seu poder de fogo. Policiais são assassinados, mas basta a morte de um criminoso para que se iniciem investigações patrocinadas por ditas comissões de direitos humanos”. Será que ele desconhece os efeitos altamente desastrosos de permitir que cidadãos sem preparo algum ostentem armas de fogo? Ele desconhece os recorrentes atentados à arma em escolas, muitos dos quais no EUA, onde a compra de armas é facilitada? Será que ele não cogita que em qualquer briga de trânsito, ou de um casal, ou entre alunos em uma escola, o porte de armas é a fronteira para a ocorrência de mortes? Será que ele não pensa que o Estado deve agir para coibir a aquisição ilegal de armas, incorrendo inclusive dentro da própria policia para que isso não aconteça?

Mais a frente ele diz que a morte de policiais não recebe o mesmo tratamento dos defensores dos direitos humanos que a morte de bandidos e, por fim, pergunta-se ironicamente “Os ‘defensores dos direitos humanos’ vão defender a liberdade dos assassinos de Marielle?”.

Além de ser de uma vexaminosa pobreza intelectual e jornalística o texto, ao levantar tais questões, expõe uma visão errada da política, das contradições sociais e, sobretudo, dos direitos humanos. É logico que a morte de policiais é uma tragédia considerada urgente para aqueles que possuem uma visão progressista da sociedade. Mas a cultura repressiva, que vem da ditadura militar e ainda ressoa na PM, de atirar para matar, sobretudo os pobres e negros, a cultura “justiceira” não é em nada defensável. A defesa dos direitos humanos é das maiores entidades do avanço. É a corroboração da hominização, da evolução da espécie. Ela, no limite, contempla a possibilidade de ressocialização dos marginalizados uma vez que se assenta na compreensão do ser social em seu contexto, em seu caráter intrínseco e como resultado de sua história. Não apenas de sua história política, mas também sua evolução orgânica e material. Sua total compreensão e assimilação, entretanto, é ainda um grande desafio para a humanidade.

Pressinto, enfim, que tais expressões, em vez de análises e opiniões sérias, forjam pretextos para um estado de exceção. Sinais de endurecimento.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

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  • Carlos Maurício Ardissone

    Talvez se a articulista tivesse lido os inúmeros depoimentos publicados no Estadão, em reação ao artigo sobre a dominação da esquerda na academia, muitos da lavra de professores e alunos, não se precipitasse em qualificar o diagnóstico de falso. Para não mencionar as inúmeras mensagens que recebi de colegas da academia. Os exemplos pululam em matéria de doutrinação ideológica, sindical e partidário dentro do ambiente de ensino. Não é nada difícil encontrá-los. Mencionar alguns professores sérios que não incorrem nessa prática vil, certamente exceções, não invalida o argumento geral. Só o confirma.

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