A passagem do Bicentenário da Independência do Brasil junto com uma campanha eleitoral tão decisiva, tornam ainda mais evidentes os conflitos de interesses que marcaram a história e ainda mais complexa a reflexão, para quem se propõe a fazê-la.
Chegar aos 200 anos tendo no comando do país uma pessoa com ideias e práticas tão retrogradas, antissociais e repulsivas, como as de Jair Bolsonaro, pode até dar uma falsa impressão de que evoluímos pouco. O espírito do atual governo e do anterior, de Michel Temer, traz à memória um passado colonial, escravista, subdesenvolvido e relegado ao abandono.
Mas o momento pede que ressaltemos qual é o país com o qual nos identificamos e como o projetamos para o futuro.
Recentemente me perguntaram se temos o que comemorar no Bicentenário da Independência, e o meu impulso foi detectar uma linha de civilização que estendemos desde 1822. Como uma corrente imaginária de pessoas, desde o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva até a jogadora Marta Vieira, em uma trajetória de lutas, descobertas, criatividade e solidariedade.
Assim nasceu a ideia de, junto com as centrais sindicais CUT, Força Sindical, UGT, CTB, CSB e Nova Central, definir uma seleção de pessoas, desde as que viveram as lutas pela independência, pela abolição e pela República, até as que, na atualidade, desbravam caminhos para irmos além.
O projeto instigou sindicalistas e jornalistas a buscarem na memória nomes que deveriam ter uma cadeira na estimada seleção. Foi um grande trabalho coletivo cujo ponto de partida foi a publicação, em vários sites, em dezembro de 2021, do artigo “Bicentenário da Independência: resgatar nossas lutas e nossas referências”.
A seleção dos 200 nomes tornou-se um grande mosaico, amplo, diverso e com representações de vários setores da sociedade. Não foi fácil, mas valeu a pena. E, acima de tudo, foi um exercício de diálogo e de consenso.
Instigante e desafiadora, a ideia gerou ainda outro projeto complementar: uma lista (criada por um grupo de jornalistas da imprensa sindical, o André Cintra, Marcos Ruy, Susana Buzeli, Val Gomes e eu) de 200 obras que atravessam esses 200 anos e expressam o caráter modernista, inventivo e miscigenado da cultura brasileira.
Após o lançamento do projeto e a divulgação dos nomes na Câmara Municipal de São Paulo, em 15 de agosto de 2022, com direito à participação da Corporação Musical Operária da Lapa (em atividade desde 1881), sindicatos e a imprensa progressista repercutiram o evento, alguns ressaltando o conjunto da obra e outros destacando nomes de suas categorias, de seus Estados e de seus grupos sociais. Esta apropriação por parte das entidades e de pessoas que gostaram do projeto, reforçou o caráter coletivo, didático e agregador da ideia sobre a qual trabalhamos.
Uma ideia de país
O eclético mosaico que construímos revela que o Brasil não é apenas resultado das forças do retrocesso. É também resultado do trabalho de pessoas que projetaram em suas ações ideias sobre a nação.
Considerando a dinâmica de interesses que move a sociedade, com suas contradições e reviravoltas, avançamos ao longo desses 200 anos, mantendo a unidade geográfica, a identidade nacional, o desenvolvimento social e o apreço pela democracia, a qual lutamos para manter e aprimorar.
O advento do fenômeno Temer e Bolsonaro e o clima de golpismo que se instalou na República não são o fim da história. Mas para movê-la de acordo com valores progressistas e humanistas é essencial uma ideia bem formada de país.
Só com uma ideia bem definida sobre qual o país que existe e como ele pode evoluir é possível usar melhor a palavra democracia e não apenas reproduzi-la de forma vazia e manipulável politicamente.
Os 200 nomes definidos pelas centrais sindicais contam uma história de grandeza e de coragem. Muitos outros nomes cabem nessa história. Como disse o jornalista João Guilherme Vargas Netto ela é a pura expressão do povo brasileiro.
Urge conhecer a vida por trás de cada nome e pensar o Brasil para levar adiante a corrente de lutas, de descobertas, de criatividade e solidariedade que nos faz vencer o atraso e construir um Brasil melhor.
Carolina Maria Ruy é coordenadora do Centro de Memória Sindical