Quinta-feira passada, pouco antes da meia noite, centro velho de um Porto não muito Alegre, agora sucessivas vezes atormentado por vendavais e enchentes que apagam o já pouco brilho que restou daquela outrora capital da democracia e da participação popular e arrastam em correntezas instantâneas para bueiros lúgubres a esperança que insiste, resiste.
Era uma noite aparentemente amena, longe da nada agradável alcunha de Forno Alegre em que os irredutíveis habitantes desprivilegiados e desafortunados precisavam enfrentar nos dias intermináveis de verão escaldante. Era uma noite como outras tantas para aqueles que por conta do vício, da loucura ou do desemprego – distintas facetas de um capitalismo cada dia mais monstruoso que vitimiza impiedosamente as gentes, seus sonhos e suas dores.
Suspiro, porém sem resignação.
A vida às vezes parece ser feita de pequenas idiossincrasias crivadas de hostil ironia. Na curva da esquina, no recuo da entrada de um prédio de meia idade arquitetônica (anos 1940, quando muito 1950) dormia um “Pedro de Tal”, jargão para designar os zés e joões ninguéns que povoam as marquises, viadutos, calçadas e outras prisões ao ar livre nas capitais.
Dormia um sono ferrenho talvez movido pelas doses e goles alucinantes e desesperados. Talvez fingisse o sono para que continuasse ignorado e esquecido, tamanha é a rutileza de sua existência, quase invisível não fosse inodora. E do altar das ironias, hipocrisias e crueldades desse sistema-mundo-monstro via-se que o papelão que o separava finamente da pedra mármore do degrau da escada de entrada do prédio antigo trazia a inscrição “cuidado frágil”, aqui no texto rebatizado de “cuidado, frágil” por obrigações gramaticais da ética e da humanidade, abalada e constrangida e revolta do escriba (NÃO COMPREENDI) e de quem o acompanhava e registrou a cena com estupefação.
“Cuidado, frágeis: fragilizados”, eis os homens e mulheres que seguem desde há tempos pingentes nas avenidas da capital. Oxalá, a consciência aviltada pela corrupção descarada, a exploração desalmada de territórios e vivências transmutadas em arranha-céus e cidadelas neomedievais das incorporadoras e pela privataria que só fez prejuízos e transtornos na vida das pessoas, também inclua a recusa a esse estado de coisas que nos alerta para o quão frágil é o limiar entre a civilização e a barbárie e daí à selvageria.
Alex Saratt é 1° vice-presidente do Cpers, Diretor Adjunto da CNTE e Secretário de Comunicação da CTB RS
Geanine Bolzan
Por entre linhas, as entrelinhas mais humanísticas que já li.
Como não se emocionar? Continuam soprando ventos desgarrados..
Silvia Teixeira
Lindo demais e triste demais, como aceitar sem espernear que já basta dessas situações serem aceitas como normais, como se não nos atingissem , nossas ruas e marquises estão a cada noite mais cheias… Enquanto isso lamentamos.