Nos comerciais dos horários ainda nobres da televisão brasileira, a empresa Caoa Chery parece orgulhosa ao anunciar seu espetacular crescimento. Registrou aumento de 52,5% nas vendas em relação a 2021, mesmo em plena crise de desemprego e pandemia. “Com 9.603 veículos vendidos o grupo chegou a 2,56% de participação e planeja encerrar 2022 com 4% de share” afirmou o jornalista especializado no segmento automotivo, Marcos Camargo Jr., para o R7 (em 12/04/2022).
A empresa não economiza em publicidade e isso salta aos olhos. Nos intervalos do noticiário noturno a sala é invadida pelo volume nitidamente mais potente que a média da programação e pela agressividade de seus anúncios que deixam claro sua alta competitividade no mercado de automóveis.
Em sua matéria, Marcos Camargo revela também que “a marca comemora o crescimento diante do mercado que caiu na ordem de 25,3% no mesmo período” e que entre os três primeiros meses do ano, março foi o que registrou o melhor índice: “foram 3.170 unidades emplacadas”. Ele aponta que o Gerente Executivo Comercial da Caoa Chery, Tai Kawasaki, atribui o sucesso ao fato de os produtos estarem em “sintonia com as necessidades dos consumidores, adaptados ao modo de condução do brasileiro, ao mesmo tempo em que despertam o desejo pela marca” e que a ambição, claro, é “seguir crescendo ainda mais”.
Mas mesmo com o sucesso emplacado em março, “3.170 unidades”, sucesso resultante do trabalho daqueles que as empresas cinicamente chamam de “colaboradores”, no início de maio a Caoa anunciou o fechamento da unidade de Jacareí (SP) e a consequente demissão de 485 metalúrgicos. Nada menos que a interrupção do trabalho de 485 famílias e de toda a cadeia de serviços e de produção que a unidade gera, e vai deixar de gerar, em torno dela.
A empresa alega que transferirá a produção para a unidade de Anápolis (GO) onde tem incentivos fiscais mais atraentes. Uma alegação que não resolve o problema dos 485 que ficarão sem empregos.
Estão aí envolvidas questões econômicas e judiciais que permitem à empresa mover-se desta maneira e sobre as quais o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região tenta reagir.
O que interessa neste artigo são questões de outra ordem, mais teóricas e históricas, que tornam as contradições da Caoa um exemplo de como o liberalismo cria suas próprias encruzilhadas.
Na parte em que trata da Grande Depressão de 1929, no livro A era dos extremos, o historiador Eric Hobsbawn afirma que:
“Aqueles entre nós que viveram os anos da Grande Depressão ainda acham impossível compreender como as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão globalmente desacreditados, mais uma vez vieram a presidir um período global de Depressão em fins da década de 1980 e na de 1990, que, mais uma vez, não puderam entender nem resolver. Mesmo assim, esse estranho fenômeno deve lembrar-nos da grande característica da história que ele exemplifica: a incrível memória curta dos economistas teóricos e práticos”.
No mesmo capítulo ele diz que:
“O argumento keynesiano em favor dos benefícios da eliminação permanente do desemprego em massa era tão econômico quanto político. Os keynesianos afirmam, corretamente, que a demanda a ser gerada pela renda dos trabalhadores com pleno emprego teria o mais estimulante efeito nas economias em recessão”.
Hobsbawn publicou A era dos extremos, livro que trata da história do século 20, entre o início da Primeira Guerra Mundial (1914) e o fim da Guerra Fria (1991), no ano de 1994. Ele morreu em 2012 e não deve ter ficado surpreso quando outra grande crise, da mesma proporção da Queda da Bolsa de 1929, irrompeu em 2008. Também não o espantaria a atual e arrebatadora crise, já que, azeitada no esquecimento, a história segue um padrão de repetição que permite às ortodoxias do puro mercado livre se reeditarem a cada ciclo.
Entretanto, se os governos e seus economistas no mundo capitalista tivessem boa memória e boa-fé, seria razoável que usassem os exemplos da história para colocar limites sociais no livre mercado de forma que ele não implodisse de forma tão devastadora de tempos em tempos. Que fizessem valer o argumento keynesiano que a demanda gerada pela renda dos trabalhadores com pleno emprego teria o mais estimulante efeito nas economias em recessão. Seriam ajustes possíveis, nada radicais, em nome da sustentabilidade econômica e social.
Sustentabilidade que é negligenciada por casos como o da Caoa Chery. Imagino que planilhas de investimentos, produtividade, lucro e crescimento sejam usadas nas reuniões de cúpula da empresa, em seus planos de expansão e em suas respostas ao Sindicato e ao Ministério Publico do Trabalho. Ela não tem, dentro da lógica econômica predominante, responsabilidade com o rastro de desemprego e pobreza que deixará. Mas se este é um modelo reproduzido em série pelo país e pelo mundo o resultado não pode ser outro: desemprego e pobreza por um lado, grande concentração de riqueza por outro. Situação que, em larga escala, pode inviabilizar o próprio crescimento das empresas com o encolhimento ou o desaparecimento do poder de consumo.
Elucubrando ainda no campo teórico e histórico uma saída possível seria a ação de um Estado, nem totalitário, nem mínimo, como mediador promovendo a responsabilidade social das empresas como contrapartida pelo seu crescimento. Não estou falando em Revolução. Estou falando em políticas sociais e programas de desenvolvimento.
Um teórico neoliberal, frente a tal proposta, argumentaria que se o Estado colocasse condições para as fábricas elas buscariam outros lugares para se estabelecer onde a liberdade fosse maior e os compromissos, menores. Sim, mas esta é justamente a lógica disfuncional do ultraliberalismo. Uma lógica fincada na geração de pobreza e desigualdade que, no fim das contas, é uma armadilha até para ele mesmo.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical