Publicado em Poder360
As lições da guerra da Ucrânia não são poucas, principalmente para nações e países como o Brasil, uma potência média, rica e que tem todas as condições de se tornar um país desenvolvido numa América do Sul e Latina integradas. O uso da guerra como instrumento em busca de uma paz que atenda os interesses das grandes potências é uma constante nos últimos séculos. Após a queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética, essa foi uma regra para os Estados Unidos e a Europa. Os exemplos saltam à vista: Iraque, Kosovo, Afeganistão, Líbia e Síria, esta só não ocupada pela resistência do governo de Bashar al Assad apoiado pela Rússia e Iran, que deram um basta à “pax americana”.
Os sinais de que os Estados Unidos e a Aliança Atlântica, a Otan, e a União Europeia não aceitaram a nova realidade que se impunha no mundo com a ascensão principalmente da China, mas também da Rússia de Putin, da Índia, da Turquia e do Irã eram evidentes. Eles se expressaram na escalada anti-China liderada por Trump à frente dos Estados Unidos, um império que exerce seu poder desde o fim da 2ª Guerra Mundial e sem nenhum limite após a dissolução da URSS, acima mesmo da ONU.
Incapazes, na prática, de concorrer com a China no campo econômico, comercial e tecnológico, as chamadas potências ocidentais, tão caras à nossa mídia, iniciaram uma guerra híbrida contra a China a pretexto de defender os direitos humanos e a economia de mercado, o mundo livre.
Os EUA não são mais uma república democrática, para usar o conceito liberal, mas sim um império e uma plutocracia, com apoio do dólar, das Forças Armadas, único país com bases e força militar estratégica em todo o mundo. A partir da hegemonia cultural e política conquistada, passaram a ditar a ordem internacional segundo suas leis e interesses.
Sanções econômicas, bloqueios, desestabilização de governos, golpes militares ou parlamentares-judiciais passaram a ser a norma da política internacional, uma nova forma de guerra, de intervenção em outros países e nações, com ou sem anuência das Nações Unidas. Cuba, há 60 anos, Venezuela, Irã e agora a Rússia. Os golpes em Honduras, Paraguai, Bolívia e Brasil estão presentes ainda em nossa memória. O uso e abuso das redes sociais controladas por multinacionais de tecnologia norte-americanas, das fake news, são a regra na arena internacional.
Avanço da OTAN
Desde o fim da União Soviética ficou estabelecido nos acordos entre Gorbachev e Bush-pai que a Otan não se estenderia para a Europa Oriental. Mas não foi o que ocorreu: houve expansão e militarização de toda aquela ex-zona de influência da União Soviética, instalação de mísseis nucleares na Polônia, intervenção via Geórgia nos assuntos internos da Federação Russa, estimulando guerras separatistas. A resposta da Rússia não tardou, com a intervenção e ocupação da capital da Geórgia, instalação de mísseis nucleares em Kaliningrado, cidade russa entre a Polônia e a Lituânia, herança da 2ª Guerra Mundial.
Em 2014, com aberta intervenção política, midiática, diplomática e militar –sim, com ajuda militar–, um golpe de Estado destituiu o governo pró-Rússia da Ucrânia. Tanto os Estados Unidos como a União Europeia não esconderam seu apoio; assumiram o lado dos golpistas com forte propaganda apresentando-os como uma cruzada democrática do ocidente civilizado.
As consequências não tardaram. Veio a declaração da independência do Donbass com a criação das repúblicas de Donetsk e Luhansk. Cidades onde a maioria da população é de origem russa, a cultura idem, e o idioma predominante é o russo. Deu-se início à 1ª guerra entre a Rússia e a Ucrânia, agora pró-Ocidente.
Não bastasse a ilegal intervenção na Ucrânia com o apoio ao golpe de 2014, os Estados Unidos e a União Europeia fecharam os olhos às truculências do novo governo e estimularam a política de limpeza étnica, proibição do russo como 2ª língua na Ucrânia, ataques à população russa, apoio a milícias fascistas, seja o grupo de direita Azov e seus batalhões armados, o partido Svoboda, o Pravyi Sector (Setor da Direita), que ostentam símbolos nazistas.
A militarização da Ucrânia pelas potências ocidentais e a proposta de integrá-la à Otan foi a gota d’água para Putin e a Rússia, dando início à escalada política e diplomática que levou à invasão e à guerra. Em 2014, a Rússia já tinha ocupado e anexado a Criméia, a ela ligada histórica e culturalmente, com uma população majoritária russa, como consequência da chamada revolução Maidan, nome da praça em Kiev das principais manifestações contra o governo pró-Rússia de Victor Yanukovych, deposto com apoio dos Estados Unidos e Europa.
Tragédia da guerra
Infelizmente a realidade se impôs e a resposta russa foi a invasão da Ucrânia. Tanto os Estados Unidos como a União Europeia não foram capazes de resolver por meios diplomáticos, pacíficos, de preferência via Nações Unidas, um conflito de interesses legítimos: manter a Ucrânia independente, mas desmilitarizada e fora da Otan, sem armas nucleares conforme demandava a Rússia, além da autonomia das regiões do Donbass conforme os acordos de Minsk.
A tragédia da guerra e os riscos para todo o mundo, a partir das sanções decididas pelos Estados Unidos e seus aliados, que não são a maioria e muito menos representam o mundo como vende certa mídia brasileira, são a prova de que não há limites para o império que se recusa a redesenhar a governança do mundo a partir da emergência das novas potências começando pela China.
No fundo, os Estados Unidos iniciaram uma guerra híbrida contra a China e um cerco estratégico à Rússia desde o final da Guerra Fria. E nessa empreitada conquistaram o apoio da União Europeia que, frente ao avanço tecnológico e comercial da China disputando seus mercados, acabou aderindo à uma política insana de provocações e ameaças.
Os riscos, para além de uma crise econômica e do preço da guerra para as populações civis, são generalizados para todos, inclusive para a ordem internacional inaugurada em Bretton Woods que deu ao dólar e aos Estados Unidos o poder de hegemonia sobre o mundo. A ruptura de todas as regras pelas sanções e boicotes pode estimular a criação de alternativas, fora o risco de uma ruptura –e a pandemia mostrou suas consequências– das cadeias de produção e da logística do comércio internacional e, principalmente, da perda da confiança no sistema financeiro mundial.
Para nós brasileiros, adeptos, de acordo com nossa Constituição Federal, dos princípios da não intervenção, da autodeterminação dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos, fica a lição de que estamos no rumo errado ao submeter nossa economia e nossa defesa nacional à hegemonia dos Estados Unidos. Isto terá graves consequências, como estamos vivenciando, para nossa sobrevivência como nação independente e soberana.
A guerra da Ucrânia nos ensina que devemos rever imediatamente nossa estratégia de desenvolvimento nacional e retomar o fio da história e nosso papel na América Latina e no mundo. Também fortalecer nosso Estado nacional e desenvolver nossa economia industrial e tecnológica, buscando fazer as reformas para fortalecer a coesão social através de uma desconcentração da renda e da riqueza para sermos capazes de sobreviver num mundo onde o que conta são os interesses nacionais e a força não apenas militar, mas, principalmente, a unidade nacional e desenvolvimento social e econômico.
A oportunidade única está à nossa frente em outubro deste ano, quando a soberania popular se manifestará e decidirá nosso futuro.
José Dirceu de Oliveira e Silva, 75 anos, é advogado. Foi deputado estadual e federal pelo PT e ministro da Casa Civil (governo Lula).
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