PUBLICADO EM 10 de fev de 2020
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As esquerdas e os privilégios

Uma notícia importante passou quase despercebida na última semana de janeiro: a partir de pressão popular, os vereadores do município de Cachoeira Paulista, cidade que tem pouco mais de 25 mil eleitores, reduziu os seus salários de R$ 4,2 por mês para R$ 1,6. Sob os intensos protestos que ainda continuam e que resultaram numa repressão brutal com dezenas de mortos e milhares de feridos, no Chile, os deputados viram-se constrangidos a reduzir os seus salários e do alto escalão governamental em 50%. Claro, algum cínico poderá vir com a resposta pronta: “Isto não resolve os problemas”. Trata-se de meia verdade, pois sem atacar os privilégios, que são de muitas ordens, não se reduzirá as desigualdades.

A América Latina é a região mais desigual do mundo, e também a mais violenta. É uma região que precisa de uma Revolução Francesa. Esta revolução teve, dentre suas causas principais, as desigualdades sociais e os privilégios da aristocracia. A aristocracia tinha a exclusividade sobre a força, os bens, a satisfação, o luxo, o requinte das artes e os prazeres do espírito, descreve Tocqueville. Ao povo restava o trabalho, a grosseria, a ignorância, as doenças. O clero e a nobreza tinham uma infinidade de privilégios. A rigor, não pagavam impostos e até podiam cobrar impostos do povo e dos servos. Os camponeses viviam na pobreza. A desigualdade era brutal.

O Brasil vive uma situação assemelhada à da França de 1789. Os ricos estão cada vez mais ricos. Cerca da metade da população vive com até R$ 400 por mês. Aos pobres da periferia resta o abandono, a violência, a pobreza e todo tipo de intempérie social, econômica e ambiental. A rigor, as periferias das grandes cidades não têm representação política nas câmaras de vereadores, nas assembleias legislativas e na Câmara Federal. Em regra, são vítimas da manipulação, da demagogia e do engodo dos políticos.

De acordo com alguns levantamentos, os políticos, o alto funcionalismo dos 3 poderes, as altas patentes militares e policiais, os juízes, os membros do Ministério Público, entre outros setores, recebem privilégios de várias tipos. Privilégios como aposentadorias privilegiadas, pensões privilegiadas, penduricalhos privilegiados, férias privilegiadas, julgamentos privilegiados, salários privilegiados, gastos privilegiados. Os salários dos políticos, dos juízes, do alto funcionalismo são indecorosos e criminosos. Mais da metade dos juízes recebem acima do teto constitucional. Paladinos da moralidade como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol estavam entre esses que recebiam privilégios criminosos. Assessores de deputados e vereadores chegam a receber acima de R$ 20 mil por mês.

O Brasil gasta mais de R$ 700 bilhões por ano com 11,5 milhões de servidores da ativa — cerca de 20 vezes mais do que o programa Bolsa Família. Há um desequilíbrio salarial enorme no interior do funcionalismo: uma casta de privilegiados é responsável por uma grande parte desses gastos. O Brasil gasta bem mais do que seus vizinhos e do que os padrões internacionais com a folha de pagamento do funcionalismo — cerca de 10% do PIB, algo que gera déficit e impede investimentos em infraestrutura e em programas sociais estruturantes. Note-se que as comparações internacionais dizem que o número de funcionários públicos no Brasil é relativamente baixo. Isto é uma prova de que os privilégios são absurdos. É preciso fazer uma reforma administrativa profunda que combata os privilégios e derrube os altos salários. Se o salário mínimo é corrigido pela inflação, o salário dos servidores, dos deputados, dos políticos em geral e dos juízes precisa obedecer o mesmo critério se se quer uma sociedade mais igual e mais justa.

Chega a ser perturbador perceber como são poucos os políticos de esquerda que combatem os privilégios e propõem medidas para reduzir de forma estrutural as desigualdades. A reforma tributária e a reforma administrativa são fundamentais para reduzir os mecanismos da desigualdade e da iniquidade. Na medida em que os partidos e os políticos de esquerda não combatem os privilégios e, por consequência, as desigualdades, a rigor, passaram para o lado de lá do balcão, subiram para o andar de cima, para usar uma expressão do Élio Gaspari.

Na verdade, os privilégios são uma forma de corrupção. São a mais perversa forma de corrupção, pois se acoberta sob o manto da legalidade. De um ponto de vista de quem defende a igualdade e a justiça, os privilégios representam uma dupla corrupção: a corrupção contra a coisa pública, a coisa do povo; e a corrupção de princípios. O próprio fundo partidário é uma forma de corrupção. As esquerdas que não combatem os privilégios com denúncias e propostas não serão capazes de combater as desigualdades de forma estrutural. Não são esquerdas no sentido estrito do termo se é que este termo ainda tem algum significado para elas.

Se as esquerdas quiserem defender o povo pobre, combater as desigualdades e as injustiças precisam deixar de ser corporativas e de agarrar-se a privilégios próprios. O fato é que as esquerdas estão perdendo bandeiras de luta sucessivamente. São incapazes de abraçar a causa ambiental, não têm propostas para combater a desigualdade, não sabem o que propor para a nova fase da revolução tecnológica e a escassez crescente de empregos, perderam a bandeira da segurança pública e estão perdendo a bandeira de combate aos privilégios. Com isso perdem credibilidade e não serão capazes de conquistar mentes e corações. Não se acreditará que essas mudarão a sociedade, que promoverão a inovação política, que liderarão a marcha para uma sociedade mais justa e mais igual. Se não se reinventarem, as esquerdas ficarão cada vez mais com cheiro de coisa antiga, com fisionomia de uma gerontocracia aristocrática e burocrática, mesmo que existam jovens aprendizes do comodismo.

Se as esquerdas não acordarem do seu plácido sono de bem viventes veremos se multiplicarem eleitores que votarão em Trumps, em Brexits, em Bolsonaros, em Marines Le Pen. Veremos se multiplicarem rebeliões de multidões descontentes com as desigualdades, mas que não têm direção e têm sentidos dúbios. Os líderes precisam perceber que há um profundo mal estar nas populações. Para enfrenta-lo, será preciso articular interesses materiais com valores morais progressistas e libertadores para confrontar a extrema-direita que junta interesses materiais e valores retrógrados. A questão que se coloca para as esquerdas é se elas querem ser vistas como causa e causadoras desse mal estar ou se querem ser vistas como mudança, inovação, futuro, esperança.

Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)

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