O livro “A verdade vencerá” expõe avaliações do ex-presidente Lula sobre a política atual e sobre os desdobramentos do governo de Dilma Rousseff. Produzido a partir de três rodadas de entrevistas com o ex-presidente para os entrevistadores Juca Kfouri, Maria Inês Nassif, Gilberto Maringoni e Ivana Jinkings, em São Paulo, nos dias 7, 15 e 28 de fevereiro de 2018, o livro tem a vantagem de apresentar um Lula já capaz de avaliar os eventos forjados para desmoralizar setores progressistas da sociedade e fortalecer uma onda reacionária e ultraconservadora que tomou corpo desde 2013 e, sobretudo, ponderar sobre o governo de sua sucessora, Dilma Rousseff.
O melhor que já se havia feito neste país
Fazer “o melhor que já se havia feito neste país do ponto de vista da inclusão social” foi a definição, logo no início, de Lula sobre seu governo, concluído em 1º de janeiro de 2011. De fato, é público e notório que, como presidente, ele proporcionou um enorme investimento na área social com programas como o Fome Zero, o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Tais ações foram possíveis por ele não se restringir à uma avaliação economicista da sociedade, uma vez que, conforme afirmou, ao se discutir o Brasil do ponto de vista meramente econômico, não se cria condições para fazer, por exemplo, o Prouni, o Fies, as escolas técnicas, etc “porque sempre aparece alguém para dizer que não dá”. Os que ele chamou de “donos do dinheiro”, aqueles que tem “verbas vitalícias no orçamento público” aparecem para dizer que não dá para fazer esse tipo de investimento.
Dilma Rousseff
Logo no meio de seu primeiro seu governo, entretanto, em 2005, esse grande sonho de desenvolvimento sofreu seu primeiro grande baque. O processo do chamado mensalão atingiu fundo o Partido dos Trabalhadores em uma tentativa, na minha opinião, de destruir e intimidar o avanço de setores e ideias verdadeiramente progressistas. Com isso, ao fim do seu segundo mandato, Lula indicou o nome de Dilma Rousseff para substituí-lo na presidência porque “os principais quadros do PT estavam baleados”. Ministra de Minas e Energia desde 2003, Dilma era, até então, pouco conhecida. Ela ganhou holofotes quando assumiu a Casa Civil, em 2005, após o afastamento do ex-ministro José Dirceu.
Lula diz que, como ministra, o trabalho “excepcional” de Dilma lhe dava segurança, e que ela era leal e fiel. Para ele, Dilma, Graça Foster, Miriam Belchior e Tereza Campello “eram um quarteto que valia ouro” e ele “imaginava que ela aprenderia” (a fazer política) com “a mesma inteligência que usou para aprender termos técnicos e econômicos”. Mas, segundo ele, “Ela cometeu muitos erros (…) pela pouca vontade que tinha de lidar com a política”.
Como exemplos ele diz que ele havia sugerido o Alexandre Padilha como ministro responsável pela articulação política (ele foi Ministro da Saúde), e ela optou por nomear Ideli Salvatti para o cargo; segundo Lula, é uma pessoa digna, mas “muito diferente na relação humana”. Ele também achava que não seria bom nomear o Antônio Palocci, que havia sido seu Ministro da Fazenda entre janeiro de 2003 e março de 2006, como Ministro da Casa Civil, “mas ela não ouviu”. Além disso, Lula a aconselhou a nomear o Henrique Meirelles para a Fazenda “porque o Meirelles daria a tranquilidade de quem tinha dado certo num outro governo” e dizia para ela que “a questão com o Meirelles é saber como lidar com ele”. Ela, entretanto, manteve Guido Mantega.
Era do perfil de sua sucessora, conforme afirmou o ex-presidente, “não ouvir” conselhos porque, palavras dele: “Ela achava que não havia alguém além dela capaz de fazer as coisas”.
Reeleição
Lula afirmou que tinha “clareza” que voltaria para a presidência em 2014, mas que, como respeitava a “democracia no partido” só sairia candidato se a própria Dilma o procurasse e dissesse que ele deveria ser o candidato. Mas isso não aconteceu. “O partido começou a insinuar uma campanha ‘volta Lula’”. E ele acabou com essa ideia e disse que a candidata era ela.
Quando Dilma se reelegeu Lula conta que ela ficou “triste”. “A sensação que tive foi que ela não tinha gostado de ganhar. Ela dizia que nunca mais queria participar de um debate.”
Em seu segundo mandato, iniciado em janeiro de 2015, o perfil intransigente de Dilma Rousseff foi agravado pelo que Lula chamou de “forçação (sic) de barra para tentar separar os dois governos” (o de Lula e o de Dilma). “Havia alguém no governo que tentava mostrar para ela que o segundo mandato deveria ser a cara dela. O João Santana [marqueteiro] teve um papel nessa história de tentar criar uma imagem própria da Dilma, desvinculada do Lula”, disse ele.
Logo depois de sua vitória Lula diz que sugeriu o nome de Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco, para a Fazenda e que, embora Dilma parecesse “ter aceitado”, para sua surpresa, ela nomeou o Joaquim Levy, algo que Lula soube pela imprensa. Levy, como ministro, tinha um perfil muito liberal para o padrão dos governos do PT. Ele defendia o “ajuste fiscal” e cortes em investimentos sociais, indo na contramão de propostas e promessas de campanha de Dilma. Na visão do ex-presidente isso a deixou “desacreditada”. No lugar dela, em vez de falar em ajuste fiscal, ele teria “feito uma aposta no Brasil”.
“Ganhamos a eleição [2014] com um discurso”, aí “Primeiro veio o Levy como ministro da Fazenda, o que foi um desastre para a nossa militância. Depois a proposta de Reforma da Previdência apresentada dia 29 de dezembro de 2014. Quem é militante da base do partido sabe que ali nós perdemos muita credibilidade”, disse. A militância e o movimento se sentiram traídos e a oposição usou isso, taxando de estelionato eleitoral – “isso nos fragilizou demais”.
Em pouco tempo a aprovação do governo Dilma despencou para 8%, a mesma de Fernando Henrique em 1999, conforme apontou Lula em suas falas. Mas, segundo ele, FHC tinha em seu favor, Michel Temer na presidência da Câmara dos Deputados e o Marco Maciel como vice presidente. Eram fieis a ele. E Dilma tinha Eduardo Cunha minando todas as ações do executivo e o mesmo Michel Temer de FHC, neste caso como um vice “um traidor”.
Impeachment ou golpe
Sobre o impeachment ele disse que o governo “achou” que teria em seu favor “números fictícios” de votos na Câmara dos Deputados. Falava-se em “300, 280, 270 votos” na Câmara, sem que para isso tivessem feito as articulações necessárias para “enfrentar uma guerra”. O resultado foram apenas 167 votos a favor do governo na Câmara dos Deputados.
Para ele o golpe foi legitimado “ganhando” a imprensa, a opinião pública e construindo maioria entre os parlamentares. “Civilizaram” e “modernizaram” o golpe, disse, em um processo que envolveu o “poder econômico”, “o sistema financeiro”, “interesses multinacionais”, “interesse de desmontar o sistema financeiro brasileiro, sobretudo os bancos públicos” e “interesse de entregar a Petrobras ao capital estrangeiro”.
Neste ponto ele chamou a atenção para um assunto que ressurgiu agora, com o avanço da extrema direita nas pesquisas de intenção de votos para presidente: o Instituto Millennium. “Não se fala mais de uma coisa chamada Millenium. Várias vezes eu tentei abrir discussão sobre o Instituto Millenium”, alertou Lula. Segundo a historiadora Christiane Zalazar, em um artigo que está circulando nas redes sociais, o Instituto Millennium, criado em 2005 para difundir uma visão de mundo liberal, não é nada menos que “uma bomba para o povo” e quando seus ideais prevalecerem “precisará de alguém que assegure a ordem e as reações do povo precisarão ser reprimidas à força”.
A PF mentiu no inquérito, o Ministério Publico mentiu na denuncia
Ao ser perguntado se o preço que pagam por manter Lula na cadeia é maior do que se ele fosse exilado, falou: “o preço que vai ser pago é a mentira contada agora”. Disse ainda que a PF mentiu no inquérito, o Ministério Publico mentiu na denuncia e transformaram as mentiras em um processo que o condenou. Segundo ele a Lei da Ficha Limpa, que foi sancionada em seu governo após uma reivindicação popular, está sendo desvirtuada e usada politicamente.
Inabilidade em lidar com uma coalizão heterogênea
Não faço coro àqueles que querem impor ao PT uma autocrítica sobre ações que levaram à sua derrocada e ao triunfo da direita com seu projeto liberal, como as articulações que resultaram na eleição do deputado Eduardo Cunha para presidente da Câmara e como na escolha do vice-presidente Michel Temer. Acredito que a direita não se constrange em agir por meios escusos para atingir seus interesses de classe e, justamente por isso, aproveitou-se de todas as brechas que um governo progressista, como foi o do PT, abriu para sua atuação. É, desta forma, mais útil, tentar entender quais foram essas brechas pelas quais se infiltram aqueles que agem para cortar os direitos do povo trabalhador e ampliar a liberdade de exploração de grandes monopólios, sobretudo estrangeiros, muitas vezes, do mercado financeiro.
Entendi que, de um modo geral, Lula avaliou que a indicação de Dilma como sua sucessora foi um risco alto. A despeito de seu preparo técnico e intelectual e a despeito de sua lealdade quanto ao programa do partido, a Presidência da República envolve relações que demandam uma sagacidade e um traquejo que Dilma não tem, e isso a colocou em uma situação de fragilidade. Além disso, em seu governo a crise econômica mundial não pode mais ser contida nacionalmente. A situação do comércio internacional afetou seu governo e, para tentar governar, Dilma fez opções que a deixaram ainda mais isolada. A brecha pela qual a direita entrou, e fez o estrago que ora vivemos, foi justamente esta inabilidade em lidar com uma coalizão heterogênea e porosa.
Retomar um novo ciclo de desenvolvimento e inclusão social
O “estrago” a que me refiro, entretanto, pode ter destruído um governo, mas não feriu de morte a disposição de implementar um projeto nacional, com ênfase nas questões sociais, que o campo progressista apresenta. Nossos problemas vêm de longe e tem raízes fundas. Em mais de 500 anos de história, a política brasileira apresentou muito mais ações que resultaram no aprofundamento da desigualdade e na geração de pobreza, do que ações voltadas à justiça social. Deste ponto de vista, os anos de governo petista, com seu foco em inclusão social, representam o início de um projeto, que pode ser retomado, e um parâmetro para a população avaliar a política.
Abre-se agora a possibilidade de o país se engajar em um novo ciclo de desenvolvimento e inclusão social no Brasil, se conseguirmos eleger Ciro Gomes ou Fernando Haddad como Presidente da República. Sim, temos duas alternativas, cada uma com sua singularidade, mas que convergem quando o assunto é comprometimento com o povo e com os trabalhadores.
Nestas eleições o saldo positivo da experiência progressista que tivemos será colocado na balança. Se o bom senso triunfar sobre o obscurantismo a política e a democracia brasileira poderão ter pela frente um caminho de amadurecimento e prosperidade.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical