Ao analisar os resultados da enquete intitulada Sem parar: a vida das mulheres na pandemia² sob a perspectiva do trabalho, o que nos chama a atenção é a relevância da condição de inserção das mulheres, sobretudo das mulheres negras³, no enfrentamento à crise da covid-19. Parte-se da constatação de que as condições de inserção e permanência das mulheres no mundo do trabalho nestes últimos cinco anos foram bastante fragilizadas com a crise econômica, e esta fragilização se amplificou com as políticas de austeridade fiscal. Desde 2015, a crise alterou de maneira significativa a condição de vida da maioria da população, promovendo um grande retrocesso econômico e social, particularmente sobre a vida e a autonomia econômica das mulheres. A redução do teto dos gastos públicos imposta pela Emenda Constitucional 95 e a crise econômica sem precedentes resultaram na ampliação do desemprego e da desigualdade.
Esse quadro se agravou diante da crise atual, uma vez que milhões de mulheres tiveram suas atividades interrompidas pelas recomendações de isolamento social. Aquelas que se encontravam em condições mais vulneráveis se viram subitamente sem trabalho e sem renda. Trata-se de mulheres majoritariamente inseridas no trabalho informal e por conta própria, trabalhos tradicionalmente mais precários e desprotegidos.
A crise também acentuou uma realidade invisibilizada pelo capitalismo, a das pessoas que estão fora da força de trabalho. A divulgação das primeiras estatísticas oficiais pelo IBGE – PNAD covid-19 deu realce a essa realidade ao destacar a presença de 74,5 milhões de pessoas nesta condição, sendo que 26,4 milhões declararam que gostariam de trabalhar. O dado chamou a atenção pela sua magnitude. Contudo, antes da pandemia, os dados da PNADC anual, de 2019, já registrava a presença de 67,3 milhões de pessoas fora da força de trabalho, sendo 64,5% de mulheres, considerando que as mulheres negras são maioria deste grupo. 42,5% residiam em domicílios cuja renda per capta alcançava até ½ salário mínimo. Os dados são compatíveis com os resultados da pesquisa Sem parar…, realizada pela SOF e Gênero e Número, na qual, do total das mulheres nestas condições, 58% são negras. Pela definição das estatísticas oficiais para se referir às pessoas não estão ocupadas em trabalho remunerado e não estão procurando trabalho, diz-se que estão inativas.
A pesquisa também identificou um número expressivo de mulheres que se declararam inseridas no autoconsumo – isso se refere à produção para consumo próprio, realidade mais frequente entre as trabalhadoras rurais, mas também com presença nos espaços urbanos. O dado sobre o autoconsumo é revelador da participação das mulheres em esferas não mercantis, ou seja, em que se garante o sustento da vida por meio de outras fontes que não passam pelos circuitos mercantis de produção capitalista. Do total de mulheres que afirmaram estar inseridas no autoconsumo, ⅔ (63,5%) são negras. A pesquisa também identificou a presença na economia solidária em proporção muito semelhante à daquelas que se declararam no autoconsumo. Dentre elas, praticamente ⅔ eram mulheres negras (60,7%).
As tarefas de cuidados são um grande limitador para as mulheres mais pobres. Em parte, o afastamento das mulheres do mercado de trabalho está associado à maternidade e à ausência de equipamentos públicos, o que impõe às mais pobres que se afastem temporariamente de alguma atividade remunerada para se dedicarem às atividades de cuidados – que demandam grande quantidade trabalho e não estão restritas ao cuidado das crianças, envolvendo também idosos, enfermos e adultos.
A outra expressão dos limites e contradições na inserção das mulheres tem relação com a taxa de desocupação. As mulheres já vinham ostentando taxas de desemprego mais elevadas, e isso tende a se acentuar de forma incontrolável com a crise. No 1º trimestre de 2020, o desemprego já registrava níveis elevados: 17,3% entre as mulheres negras e 11,3% entre as mulheres brancas. A taxa de desemprego das mulheres negras representava mais do que o dobro da dos homens brancos (8,4%). Por outro lado, entre aquelas que se inserem no mundo do trabalho, as condições são bastante desfavoráveis. No 1º trimestre de 2020, 52,1% das mulheres negras e 43,8% das mulheres brancas entraram no mercado de trabalho por meio da informalidade, condição que se refere às pessoas que estão no emprego sem carteira, no emprego doméstico sem carteira e no trabalho por conta própria. Esta condição, na maior parte das vezes, se perpetua durante toda a trajetória laboral.
Os resultados apresentados pela pesquisa Sem parar… seguem a mesma direção: entre as que declararam estar desempregadas, 39% eram brancas e 58,5% negras; por outro lado, as brancas ostentavam percentuais superiores entre as empregadas (52,6%) em relação às mulheres negras (45,7%). Os resultados evidenciam que os efeitos da crise afetam, sobremaneira, as pessoas mais pobres, as mulheres, as pessoas negras e, por conseguinte, a intersecção destas três dimensões: mulheres pobres e negras.
Ao mesmo tempo em que se amplia o número de pessoas sem ocupação, a casa se converte no centro das rotinas diárias, e é nela que irão se intensificar as exigências sobre as mulheres com os cuidados e as tarefas domésticas, além do acirramento da violência doméstica.
A pandemia afetou de forma distinta as atividades econômicas e as ocupações com forte recorte de classe, gênero e raça. As ocupações mais qualificadas tiveram suas atividades suspensas ou direcionadas para o trabalho remoto. Enquanto isso, uma parcela seguiu trabalhando – seja pelas características do trabalho como pertencente aos segmentos considerados essenciais ou por exigência dos empregadores. E, para uma outra parcela, a demissão foi imediata, principalmente em ocupações que não podem ser realizadas remotamente ou tiveram suas atividades completamente paralisadas. Estabeleceu-se uma clivagem entre os que tiveram assegurados os seus rendimentos e a proteção à vida, e os precisaram recorrer ao auxilio emergencial ou seguir trabalhando e colocando em risco a sua existência.
As mulheres estão inseridas predominantemente nos serviços pessoais e domiciliares: primeiramente no emprego doméstico, seguida pelas vendedoras a domicilio, balconistas e vendedoras, especialistas em tratamento de beleza e cabeleireiras, escriturárias, cozinheiras, professoras do ensino fundamental, comerciantes de lojas… São mais de 16 milhões de mulheres nestas ocupações. Trata-se de atividades que foram fortemente afetadas pelas orientações de isolamento social. Seu retorno se dará de forma progressiva e lenta, o que traz implicações sérias sobre o trabalho das mulheres no próximo período. Depois do emprego com carteira (33,6%), a segunda forma mais frequente de inserção na ocupação é o trabalho por conta própria (21,1%), seguido pelo emprego doméstico (13,5%).
A magnitude e a natureza das mudanças para o período pós-pandemia ainda são elementos de reflexão. Entretanto, os efeitos sobre a pobreza, o aumento do desemprego, da informalidade e das desigualdades sociais são incontestáveis, e trazem consigo reflexos na perda de maior autonomia econômica para as mulheres e impactos perversos para as comunidades e as economias em geral.
¹ Marilane Teixeira é economista, pesquisadora do CESIT/IE-Unicamp e presidenta da SOF Sempreviva Organização Feminista.
² A pesquisa foi realizada por meio da plataforma Survey Monkey e coletou 2.642 respostas em todo o Brasil. Trata-se de uma amostra não probabilística com viés de conveniência em que as respostas foram possíveis para as pessoas que têm acesso a equipamento digital. Acesso a pesquisa completa. http://mulheresnapandemia.sof.org.br/efeitos-pandemia-mulheres-trabalhadoras/
³ Embora a pesquisa separe pessoas pardas e pretas, para efeito de análise e seguindo as recomendações dos movimentos raciais analisaremos conjuntamente.