Esse debate, é preciso que se diga de plano, tem um tanto de sarcasmo. Afinal, um terço das pessoas no Brasil não tem sequer acesso à internet. Há mais de 19 milhões de miseráveis. Ainda assim, nosso país é pioneiro na informatização do sistema de Justiça. Hoje, o processo trabalhista, por exemplo, é integralmente eletrônico. O próprio governo federal informatizou praticamente tudo e insiste em instituir a tal carteira verde amarelo, totalmente informatizada e, claro, com precarização de direitos.
Seria possível discutir, de uma perspectiva crítica, a razão dessa ânsia em investir em informatização, em lugar de garantir saneamento básico, alimentação saudável, trabalho decente. Não é disso que se trata. A alegação de fraude na votação eletrônica nunca foi comprovada. Para que o argumento não suscite dúvidas sobre a sanidade mental de quem o defende, diz-se que se a eleição de 2018 não tivesse sido fraudada, a vitória teria sido obtida já no primeiro turno. A grande questão, não enfrentada, se quisermos levar a sério um tal argumento, é por que razão a vitória foi permitida?
Como se explica a fraude contra o vencedor?
Atualmente, nossas eleições são integralmente feitas por meio eletrônico, como aliás têm sido realizadas as audiências judiciais, as transações financeiras e tantos outros serviços públicos. As urnas eletrônicas foram introduzidas no país em 1996, justamente ao argumento de que era necessário coibir fraudes. Voto de papel, com seu sistema custoso e lento de controle e apuração, é bem mais suscetível de manipulação.
Parece claro e é mesmo incrível que se precise dizer: pretender retornar ao voto impresso é o mesmo que exigir o retorno do cheque, da máquina de escrever ou do orelhão, como referem os tantos memes criados a partir dessa discussão distópica.
A questão principal, porém, não é a razão pela qual se pretende o retorno do voto impresso, mas o desvio de discurso que essa discussão permite. Afinal, o Parlamento pode rejeitar o projeto de lei, reconhecendo seu anacronismo, como, aliás, decidiu a comissão da Câmara de Deputados na semana passada. Ainda assim, o presidente Arthur Lira insiste em levar o tema ao plenário e a mídia segue passando horas e horas transmitindo debates e opiniões sobre a possibilidade ou não de retorno ao voto impresso.
O absurdo é naturalizado e gastamos (tempo e energia) buscando argumentos para dizer o óbvio. Podemos pensar que isso simplesmente reflete a profundidade da crise do tempo presente. Uma crise de racionalidade que justifica a defesa de que a Terra é plana ou de que a vacina contra a covid19 pode nos transformar em jacarés. Estamos de tal modo perdidos como sociedade, que realmente aceitamos – com seriedade – debater algo desse tipo.
Parece-me, porém, que não se trata apenas disso.
Há uma utilidade perversa na permanência desse debate e no espaço que vem ocupando na mídia tradicional, e mesmo nas redes sociais. Enquanto discutimos algo que, convenhamos, pode realmente prevalecer tamanho o retrocesso de que se tem sido capaz ultimamente no Brasil, a chamada “reforma” política segue avançando, com texto que permite livre utilização do fundo partidário, de modo “não auditável” diga-se de passagem.
A “reforma” administrativa (PEC 32) também segue a pleno vapor, com texto que praticamente destrói a noção que temos de Estado. A MP 1045, que já é péssima, porque trata de redução de salário e jornada e suspensão temporária do contrato, tem seu projeto de conversão aditado por mais de 400 emendas, alterando-a profundamente, tal como ocorreu em 2017, com a chamada “reforma” trabalhista. Inclui o “Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore)”, que nada mais é do que retorno da proposta por três vezes já rejeitada de criação da tal carteira verde amarelo, instituindo uma contratação precarizada. Inclui, também, o “Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip)”, outra forma de contratação com menos direito, e justamente para jovens em condição de vulnerabilidade, que precisam de maior segurança social. Propõe alterações em regras de direito material e processual da CLT, do CPC e de leis específicas, em completo desacordo com o que determina o artigo 62 da Constituição.
Ainda limita a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita, amplia as hipóteses de incidência da sucumbência no processo do trabalho, prevê possibilidade expressa de “quitação geral do contrato” em minuta de acordo extrajudicial, regras que tornam ainda mais difícil o acesso à Justiça, para quem mais precisa dela. Interfere na atuação dos Auditores Fiscais, instituindo exigências para a fiscalização e reduzindo a possibilidade de imposição de multas administrativas. Considera indenizatórias verbas pagas em razão do trabalho. Todas essas alterações fragilizam ainda mais a saúde e a segurança de quem trabalha. E o texto tramita em regime de urgência, sem discussão pública, sem participação da sociedade, como determina a Convenção 144 da OIT. Sobre isso, porém, reina o silêncio.
A maioria das pessoas sequer conhece o teor dessas propostas, que emblematicamente representam os tantos projetos que vêm sendo votados e aprovados, promovendo um desmanche sem precedentes, naquilo que conseguimos construir a partir da Constituição de 1988. No último dia 5, a Câmara de Deputados aprovou o texto base do projeto de privatização dos Correios, medida que atenta contra a soberania nacional, pois se trata de dominar ou não a forma mais capilarizada de comunicação.
Enquanto discute-se o voto impresso ou as ofensas proferidas pelo presidente da República contra os ministros do STF, pouca ou nenhuma atenção é dedicada a essa destruição profunda e programada do Estado brasileiro.
Em meio a tudo isso, o governo busca a fórmula para garantir algum tipo de assistencialismo que lhe garanta condições de vitória no pleito eleitoral de 2022. É conveniente lembrar o quanto o povo brasileiro, apoiado por uma mídia atenta e exaustivamente repetitiva, repudiou a prática de “pedalada fiscal”, quando houve interesse na criação de factóide para a fragilização do Poder Executivo em 2016. Hoje, em um nível muito mais profundo de desrespeito às regras do jogo, deixar de pagar precatório parece até algo de menor importância.
Fica clara, então, a razão pela qual o assunto do voto impresso não é simplesmente descartado, por sua absurdidade. Ele serve como cortina de fumaça. Serve a tantas e diversas pessoas que ocupam espaços de poder e que tendo condições de fazer avançar investigações e pedidos de impeachment, silenciam de modo proposital, enquanto permitem e colaboram para o avanço de projetos profundamente ruins para a sociedade brasileira.
É dessas pessoas, a maioria delas eleitas pelo povo que sofrerá diretamente os efeitos de toda a destruição, que precisamos cobrar, com urgência, uma atitude, antes que seja tarde demais.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.
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