No dia 29 de julho de 2021, um incêndio atingiu um galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. Mas não foi um evento isolado. O local já sofreu com alagamentos, falta de funcionários, cortes de verbas em 2020 e o fechamento por um ano e três meses. O descaso com a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira afeta diretamente a memória e a cultura da sociedade. O público tem acesso a essa e outras reflexões ao assistir Memórias de Nitrato (2021), documentário realizado por alunas do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP para a disciplina de Documentário, orientada pelo professor Renato Levi. Nesse filme, que tem 32 minutos de duração e está disponível gratuitamente na plataforma Youtube, o espectador tem a oportunidade de conhecer mais sobre a história da instituição, ouvir relatos de trabalhadores e pesquisadores e entender as origens da crise que assola a quinta maior cinemateca do mundo.
Além de a Cinemateca ter completado 75 anos em 2021 e ter resistido a dois incêndios em menos de cinco anos, Caroline Aragaki, uma das responsáveis pela produção do documentário, sugeriu o tema para o trabalho de graduação também por não ter entendido exatamente como ocorreu o fechamento da Cinemateca em agosto de 2020: “Foi por conta da pandemia ou teve outro motivo?”. A aluna disse que outras instituições culturais já haviam sido reabertas para o público na época da produção do documentário, exceto a Cinemateca. Então, Caroline fez a proposta às colegas de grupo para investigar o descuido perante uma das maiores representações culturais do Brasil.
Yasmin Caetano, uma das integrantes do grupo na elaboração do filme, conta que o objetivo de Memórias de Nitrato era ouvir os funcionários e pessoas que estavam envolvidas com a Cinemateca Brasileira, a fim de compreender a crise da instituição e quais foram as razões que levaram a essa situação. Carlos Augusto Calil, professor da ECA e ex-diretor da Cinemateca entre 1987 e 1992, Eloá Chouzal, pesquisadora audiovisual e membro do coletivo Cinemateca Acesa, Maria Dora Mourão, também professora da ECA , diretora-executiva da Sociedade Amigos da Cinemateca e eleita diretora-geral da Cinemateca, foram alguns dos entrevistados para a realização do documentário. “Nós escolhemos o tema pensando em dar voz às histórias dos cineastas, aos roteiristas, a todo o pessoal envolvido direta ou indiretamente com a Cinemateca e ressaltar a importância dela não só para o nosso audiovisual, mas para toda a nossa cultura”, comenta Laura Alegre, outra das estudantes que participaram da produção do filme. Gabrielle Torquato, outra integrante do grupo, complementa: “A intenção foi oferecer visibilidade para as injustiças que vêm acontecendo na Cinemateca. É uma situação daquelas: ‘se você não está indignado, é porque está mal informado’”.
Para Caroline, a Cinemateca é um exemplo de como o Estado brasileiro cuida da cultura. “É uma ilustração sobre algo maior, e queria que isso fosse transmitido. No documentário, as fontes apontam que havia promessas de reabertura da Cinemateca logo, desde que foi fechada, em agosto de 2020, mas foi só depois do último incêndio no anexo do acervo, em julho de 2021, que o edital para ver quem assumiria a gestão foi publicado.”
Em relação ao desenvolvimento do documentário, entre os meses de setembro e dezembro do ano passado, as estudantes descrevem que fizeram uma pré-apuração, principalmente com matérias de jornais, e pré-entrevistas com as fontes para elaborar o roteiro de perguntas com mais precisão no momento da filmagem. Devido à pandemia, poucas entrevistas foram realizadas pessoalmente e a maioria foi feita no formato virtual. Nesse processo de produção, as alunas buscaram informações de pessoas que trabalhavam em diversas frentes da Cinemateca, com relatos diferentes, mas que se complementam. “Cada entrevistado tinha histórias tão boas, tão válidas, mas que não iriam caber em um único filme, então essas escolhas do que contar e como contar exigiram bastante criatividade e jogo de cintura para construir uma narrativa coesa”, aponta Laura sobre um dos desafios na definição final do roteiro.
Gabrielle ressalta que, durante as entrevistas, era possível enxergar a emoção daqueles que falavam sobre a riqueza dos documentos, filmes e imagens que estão armazenados lá. “O mais curioso para mim foi descobrir que, até mesmo para as pessoas que trabalhavam lá por anos, o acervo ainda é uma caixinha de surpresas. Ainda tem muito a ser descoberto, a ser analisado, a ser estudado”, afirma a estudante. Um aspecto que chama a atenção de Caroline foi que, ao longo do processo da elaboração do filme, surgiram contornos novos que ela não imaginava e que só foram possíveis por todo o trabalho de apuração que fizeram em conjunto.
Algumas cenas do documentário retratam uma manifestação contra a crise da Cinemateca Brasileira, no dia 23 de outubro de 2021. Gabrielle comenta que esperava uma mobilização maior por causa da importância da instituição, com materiais e infraestrutura em risco. “Acredito que esse dia seja um reflexo de como a arte ainda não é acessível a todos. Seria uma vitória se o documentário pudesse despertar essa reflexão no público. Por que a preservação de uma instituição com um acervo tão importante não causa maior comoção?”, questiona Gabrielle.
Assista aqui o documentário: