Há 80 anos, em novembro de 1937, uma fogueira insólita ardia na Cidade Baixa de Salvador, a poucos passos do Elevador Lacerda e do atual Mercado Modelo.
A fumaça subia da praça pública em frente à então Escola de Aprendizes de Marinheiro, hoje o comando do 2º Distrito Naval da Marinha brasileira. Militares e membros da comissão de buscas e apreensões de livros, grupo nomeado pela Comissão Executora do Estado de Guerra do governo, assistiam ao “espetáculo”.
O fogo era um símbolo dramático do combate à “propaganda do credo vermelho”, como definiram as autoridades do recém-instalado Estado Novo de Getúlio Vargas. Na ocasião, foram queimadas mais de 1,8 mil obras de literatura consideradas simpatizantes do comunismo.
Mais de 90% dos exemplares incinerados, recolhidos nas livrarias de Salvador, eram de autoria de um jovem escritor baiano já proeminente com obras de cunho marcadamente social: Jorge Amado.
Metade do lote, 808 no total, era de sua obra lançada meses antes, Capitães da Areia.
País em chamas
O Brasil dos anos 1930 fervilhava em tensões políticas, e o comunismo era um dos seus ingredientes.
Após a chamada Intentona Comunista, tentativa de levante liderada pelo capitão do Exército Luís Carlos Prestes em 1935, o governo passou a perseguir não apenas membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como intelectuais associados (corretamente ou não) à ideologia de Moscou.
Um dos casos mais notórios foi o do escritor Graciliano Ramos. Em Memórias do Cárcere, ele narra sua história como preso político – de 1936 a 1937.
Em 1937, a poucos meses das eleições presidenciais, passou a circular nos principais veículos de comunicação do país um plano falso para instaurar o comunismo no Brasil, elaborado pelo general Olympio Mourão Filho – o mesmo que lideraria mais tarde o golpe de 1964.
Batizada de Plano Cohen (um toque de antissemitismo que os historiadores não deixariam passar), a trama forjada sustentava a versão de que havia ordens da Terceira Internacional Comunista para assassinar diversos políticos e tomar o poder no país.
No poder desde 1930, Getúlio Vargas usou a estupefação criada pelo Plano Cohen para fechar o Congresso, cancelar as eleições e implantar o golpe de Estado no dia 10 de novembro de 1937. Começava assim a ditadura do Estado Novo.
Sob o novo regime, não surpreende que Capitães da Areia, uma crítica mordaz à desigualdade, que transformava meninos de rua em heróis, em vez de tratá-los como delinquentes e malandros, tenha engrossado desde o início a longa lista de obras censuradas. Além disso, o livro foi escrito por um autor filiado ao PCB – e que seria preso duas vezes por conta disso.
“No Estado Novo, qualquer coisa considerada ofensiva à moral e aos bons costumes virava alvo do regime”, disse à BBC Brasil o escritor Lira Neto, autor da trilogia Getúlio.
“Os principais intelectuais do Brasil naquele momento ou foram presos ou cooptados.”
Lira Neto lembra que até Reinações de Narizinho, livro infantil de Monteiro Lobato, seria alvo da censura do Estado Novo.
O próprio Lobato seria preso em 1941 – ironicamente, depois de recusar o convite de Vargas para dirigir o Departamento de Propaganda, órgão que tinha a dupla missão de promover o culto à personalidade do mandatário e exercer censura prévia a ideias contrárias.
De volta ao ano de 1937, na mesma fogueira em que ardiam centenas de livros de Jorge Amado, engrossavam as chamas algumas cópias de Menino de Engenho, de José Lins do Rego – uma exposição da desigualdade nas relações sociais no campo brasileiro.
Longevidade
Mas, apesar da intenção do governo de enterrar a obra, Capitães da Areia se tornou, 80 anos após o lançamento, um clássico da literatura nacional, uma denúncia longeva de um fracasso social que continua atingindo as cidades brasileiras.
“Era uma carta de denúncia de uma situação social gritante, de extrema pobreza, sobretudo em relação aos jovens e às crianças”, disse à BBC a cineasta e neta do escritor, Cecília Amado.
“Não é à toa que os livros foram queimados, porque (para o governo) era uma vergonha mostrar aquilo.”
Nascido em Itabuna, no sul da Bahia, Jorge Amado viveu e frequentou a região do Pelourinho, do porto e da Cidade Baixa de Salvador quando se mudou para a capital baiana.
“Eram regiões muito populares e, portanto, ele conviveu muito com os capitães da areia da época”, contou Cecília, em um documentário de rádio em inglês para o Serviço Mundial da BBC.
“Ele gostava de conversar com as pessoas do povo, da rua. Era um hábito dele puxar conversa com as pessoas, ouvir suas histórias, e acredito que desse modo ele se relacionou com esses meninos, que eram personagens reais.”
Jorge Amado era um jovem de 25 anos, politicamente engajado, quando Capitães da Areia começou a decolar. A expressão, disse a neta, não foi inventada pelo escritor – era como a imprensa da época se referia aos menores abandonados na região das praias.
“Falar desses meninos, de uma classe oprimida, marginalizada e rejeitada pela sociedade, e transformá-los em heróis, era de certa forma buscar nesses meninos um heroísmo que tinha a ver com sua ideologia política da época.”
‘Capitães da areia’ modernos
Mas até que ponto a atualidade do tema explica a travessia de Capitães da Areiaao longo de décadas? Afinal, menores brasileiros continuam sobrevivendo nas ruas, expostos a todo tipo de violência e sem contar com direitos e garantias básicos.
Em visita recente da BBC ao centro de Salvador, cerca de 50 crianças se aproximam de um carro branco para receber doações de comida ao cair da tarde. Uma das meninas, que diz ter dez anos, segura uma caixa de pizza contendo nuggets de frango.
“Isso aqui é comida”, diz a criança, que com o braço equilibra uma boneca sobre a caixa de pizza.
“A gente está precisando muito. Nem tenho vergonha de dizer. Tenho vergonha é de roubar.”
Há poucas estatísticas sobre o número de sem-teto em Salvador. Um levantamento feito neste ano pela ONG Projeto Axé estima que entre 14 mil e 17 mil pessoas morem nas ruas da capital baiana – incluindo 3,5 mil menores de 25 anos.
Se contabilizadas as pessoas que tiram o seu sustento das ruas, o número supera 20 mil, segundo a ONG.
‘Ir se acostumando’
Na Cidade Baixa, a reportagem encontra mãe e filha dormindo sobre caixas de papelão. Ao longe, um numeroso grupo de meninos e meninas brinca na rua. João Vítor e seu amigo, Ronald, dividem um colchão.
João Vítor tem 20 anos e vive na rua “há uns quatro ou cinco anos”. Simpático, não se envergonha de mostrar os seus pertences – uma Bíblia, um perfume e uma sacola de plástico contendo balas que ele vende na rua para ganhar o pão.
O rapaz não foi criado pelos pais. Antes de morar na rua, vivia com a avó, a quem ajudava a vender acarajé.
“Acarajé é delicioso, mas você não sabe quanto trabalho dá. Levantar às quatro da manhã para ir ao mercado, depois para casa para preparar. Quando você vai sentar, são cinco da tarde.”
Ele conta que foi uma infância difícil.
“Desde os oito anos de idade, trabalhando, trabalhando. Quantas vezes eu não chorei no meu canto? Natal, Ano Novo e eu não tinha nenhuma balinha para comer.”
Mas sua vida tomaria outro rumo depois que a avó voltou para o interior por problemas de saúde. João Vítor, então adolescente, teve de sobreviver por conta própria.
“Foi bem difícil me adaptar a essa coisa de dormir na rua, ter que comer o que tiver. O medo de outras pessoas tentarem te agredir – policial – mas aí, com o tempo, porque não tinha outra opção, você vai se acostumando, entendeu?”
“E aí eu me acostumei evoluindo. Porque você não pode se acostumar diminuindo. Sempre evoluindo. Fui crescendo. Fui mostrando a eles que eu tinha meu espaço. Mas na conversa, no diálogo, porque nem tudo se resolve com faca nem com briga. Entendeu?”
‘Coisas bem maiores’
João Vítor tem um jeito envolvente de falar. Se fosse um personagem de Capitães da Areia, não estaria longe do Professor, que passa as noites lendo para as outras crianças do grupo que não sabem ler.
Ele diz que leu o livro de Jorge Amado e compara sua própria vida à dos meninos retratados na obra.
“Eu sou um capitão da areia, porque olha a vida que a gente leva, não é verdade? A única parte que eu não sou é o lado do roubo”, diz.
“Agora, o lado de viver aventuras, viver explorando sempre o dia que a gente vive, dia após dia… Eu durmo, mas não sei se eu vou acordar, porque pode acontecer alguma coisa. Então eu durmo e, quando eu acordo, tenho que usufruir bastante daquele dia.”
Mas isso não o impede de imaginar uma vida diferente.
“Se eu pudesse ter uma casa para morar, viver em paz, arranjar uma esposa, ter um filho… Eu queria ser biólogo. Marinho. Porque eu sempre me identifiquei muito com animais, entendeu? Desde pequeno. E principalmente com o mar”, relata.
“Gosto muito. Amo. Sou apaixonado. Porque eu não vou viver isso aqui minha vida toda, eu penso coisas bem maiores.”
Dramas e alegrias
Comparar a vida dos capitães da areia dos anos 1930 com a realidade do século 21 foi um dos motivos que levaram Cecília Amado a adaptar o romance do avô para o cinema em 2011.
Ela ficou fascinada com a narrativa original, quando leu o livro na adolescência. E, já adulta, se questionava se aquelas crianças poderiam ser tão apaixonantes quanto seu avô as retratara.
Parte do processo de pesquisa para o filme foi conhecer o trabalho de ONGs locais. A cineasta conta que trabalhou com um total de 1,2 mil crianças, quase todas com histórias de desestrutura familiar que as levaram a viver na rua em algum momento.
“Nenhum menino nasce na rua, são poucos os que nascem na rua. É uma fragilidade da estrutura familiar, exatamente como era nos anos 1930”, observa.
Assim como o livro do avô, seu filme foi criticado por romantizar as crianças de rua e caracterizá-las como meninos alegres e apaixonados pela vida. Cecília Amado se defende.
“Ninguém vive só no drama. Nós, que somos abastados, com berço de ouro, pertencentes a uma classe social da burguesia, por assim dizer, também temos nossos dramas. E os meninos que vivem no drama da miséria, os capitães da areia, também têm suas alegrias.”
Humanismo
Ela diz que, ao longo das filmagens, Capitães da Areia foi se transformando de uma adaptação do romance de Jorge Amado a um filme não sobre os meninos de rua – mas para os meninos de rua na Salvador do século 21. Uma oportunidade de dar voz a essa camada esquecida da população.
Pode-se dizer que se torna assim mais fiel ao romance original que uma adaptação pura e simples da obra.
Cecília Amado diz que isso condizia mais com o avô que ela conheceu. Como muitos da esquerda mundial, Jorge Amado se decepcionaria com o comunismo real a partir das revelações de abusos do stalinismo soviético.
“A partir dos anos 1960, ele de certa forma se afastou do universo político. Mas nunca se afastou do universo social”, explica a cineasta.
“Eu digo que quando fiz o filme Capitães da Areia, me inspirei não no Jorge que escreveu o livro, mas no Jorge que eu conheci, que era essencialmente um humanista.”
Se voltasse a Salvador em 2017, o escritor baiano talvez se inspirasse a escrever novas obras de temática social, diz ela. Certamente se daria conta do imenso trabalho ainda a ser feito para reduzir o imenso abismo social no país.
Mas já não haveria razão para promover a queima de exemplares em praça pública, a exemplo do que ocorreu há 80 anos.
O escândalo maior é que, mesmo passadas tantas décadas, as histórias dos capitães da areia continuem se desenrolando, na vida real, aos olhos de todos.