Chega a 120 mil o número de mortes por covid-19 que poderiam ter sido evitadas no Brasil. Isso somente em 2020, o primeiro ano da pandemia. O dado está no informe “Anistia Internacional sobre o estado dos direitos humanos no mundo”, divulgado pela entidade nesta terça-feira (29).
Além das violações referentes à crise sanitária durante o governo Bolsonaro, o documento fundamenta em números o agravamento do desemprego, das violências policial e de gênero, da destruição do meio ambiente e da falta de acesso a alimentos no último ano.
“O relatório é uma fotografia do Brasil e do mundo no ano passado, 2021. E a fotografia é dramática”, resume Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no país. “O Brasil, ao longo da pandemia, tem emergido como o país da negligência”, atesta.
Com o documento, a Anistia Internacional vai oficiar o presidente Jair Bolsonaro (PL); a ministra Damares Alves (PP), da Secretaria da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; e os presidentes das comissões de direitos humanos na Câmara Federal e no Senado, Carlos Veras (PT) e Humberto Costa (PT), respectivamente.
Fome e pobreza
Enquanto a insegurança alimentar atinge, em algum nível, mais da metade da população brasileira, conforme indica a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, a fome é realidade para 9% dos domicílios pesquisados.
Paradoxalmente, as populações que tradicionalmente produzem alimento foram as mais atingidas. Entre comunidades agricultoras, quilombolas, indígenas e ribeirinhas, a fome afetou 12% das moradas.
São essas populações também as que enfrentam o aumento dos conflitos rurais e da invasão de suas terras, que, entre 2019 e 2020, saltou 102%. Só no ano passado, foram derrubados cerca de 13 mil km² de floresta na Amazônia brasileira. É o recorde desde 2006.
O acesso escasso à comida está relacionado também com a renda. De acordo com o documento da Anistia, a redução do Auxílio Emergencial – que, em sua primeira fase, foi de R$ 600 e depois baixou para valores entre R$ 375, R$ 250 e R$ 150 – levou muitas pessoas a viverem com graves dificuldades financeiras. Entre as mulheres negras, 38% vivem em situação de pobreza e 12,3%, em extrema pobreza.
Para Werneck, que também é médica e ativista antirracista, “o Brasil já sabia que tinha que tomar medidas para proteger a vida dessas pessoas – mulheres negras, quilombolas, indígenas, moradores das favelas e periferias, pessoas trans, população carcerária… É tanta gente –, já sabia antes da pandemia surgir.”
“E, quando surgiu, em vez de tomar medidas para garantir a essas pessoas as condições mínimas de subsistência, fez justo o contrário”, continua, exemplificando com a extinção do programa Bolsa Família e sua substituição pelo Auxílio Brasil, que inclui um número menor de beneficiados.
“Porque essas pessoas têm direitos. E a outra face do direito dessas pessoas é a obrigação da administração pública. Um presidente da República, um governador e um prefeito, não têm, entre os seus poderes, o de escolher quem vive e quem morre”, defende Jurema Werneck.
Violência policial e “guerra às drogas”
Em 2020, conforme mostra o relatório da Anistia Internacional, nos Estados Unidos – país de George Floyd e conhecido pelo genocídio racista estatal –, 888 pessoas foram mortas pela polícia.
No mesmo ano, a polícia matou 6.416 pessoas no Brasil. Entre elas, mais da metade eram jovens negros. O ano seguinte ficaria marcado pela chacina do Jacarezinho, que deixou 28 mortos em 6 de maio no Rio de Janeiro.
Na visão de Werneck, são múltiplos os fatores que explicam a crescente violência do Estado brasileiro contra sua própria população. “O não enfrentamento ao racismo e, pior que isso, o desmantelamento dos mecanismos de correção da tragédia que o racismo produz está por trás disso”.
A falta de políticas públicas de amparo à população negra e também “a opção do Estado brasileiro em desenvolver o que eles chamam de ‘guerra às drogas’”, elenca.
“Mas não se trata de uma guerra. Jovens negros, jovens pobres, não são inimigos da nação. Muito pelo contrário, são vítimas e produto dessas inequidades, injustiças e discriminações”, avalia a ativista. “O que o Estado faz é decidir implementar a eliminação dessas pessoas, vistas como inimigas”.
Continente americano
A Anistia Internacional também traz dados sobre os direitos humanos nas Américas. Aponta como um avanço as mudanças legislativas na Argentina, na Colômbia e no México que, em diferentes níveis, ampliaram o acesso das mulheres ao direito ao aborto.
No combate à pandemia, o continente americano tem o segundo maior índice de vacinação per capta. O problema, de acordo com o documento, são os contrastes.
“Temos Cuba e Chile que vacinaram 90% da população e temos o Haiti, que, no mesmo período, o do ano passado, tinha vacinado só 2%. E também os Estados Unidos e o Canadá, com estoque que dava para vacinar a população toda da região. E nem vacinam o total da sua população, nem distribuem para o resto do mundo, que está carente de vacina”, descreve Jurema.
Ativismo
“Aqui é o país onde mais se mata ativistas, mas a sociedade precisa dizer não”, aponta a diretora executiva da Anistia Internacional sobre o contexto brasileiro.
Em relação aos caminhos diante da fotografia apresentada pela entidade, Jurema Werneck defende que “é preciso dizer que ativistas são uma riqueza que a sociedade tem para garantir um caminho em busca da dignidade e da justiça”.
“Não há outro caminho”, destaca, “senão o caminho da luta”.
Fonte: Brasil de Fato | São Paulo (SP)