Itamar Assumpção era um autêntico maldito. E nem escondia. Pelo contrário, exaltava. Para começar, nomeou a banda que o acompanhava de “Isca de polícia”. Tire suas conclusões.
É possível que nos dias atuais fosse cancelado. Por muito menos, artistas mais enquadrados que ele foram. Mas não tinha tempo para firula e não poderia ser diferente. Ou ele era o oprimido, ou ele era o maldito. Aceitou a segunda opção e com ela foi grande, autêntico, inovador, sensível e lutador. Não que fosse sua intenção. Foi lutador porque chamou a atenção para si, para os negros, para os artistas, para a contracultura e para pessoas de espírito livre como ele.
Seu primeiro álbum, Beleléu – que faz 40 anos em 2021 –, marcou a estreia do selo Lira Paulistana, um grupo de atores e músicos de São Paulo. Todos malditos. Eles romperam com o controle das gravadoras que se negavam a ousar e a apostar em uma arte mais alternativa. Segundo o site Bendito Itamar, esses artistas produziam e lançavam seus trabalhos de forma independente. “Criavam suas próprias microempresas e gerenciavam a si mesmos”.
Mas nem chegue perto se você é sensível ao patrulhamento e lacração de internet. O álbum Beleléu, por exemplo, está lotado de controvérsias e de polêmicas em potencial.
Em uma música, ele diz:
Eu sei que tua mãe já dizia
É mais um malandro, talvez ladrão
Já não chega a sogra e agora a cria, que decepção
Além de otras cositas más que, bem, deixa pra lá.Muito antes de Arnaldo Antunes (que também é muito bom), ele brincou com a interação entre as palavras, os sons, as repetições, produzindo uma verdadeira arte concreta, calcada na simplicidade, direta e essencial. E o essencial em Itamar era sua condição de homem bruto e marginal na concretude da cidade. A música-tema do álbum – e a mais emblemática em sua carreira – diz muito sobre ele e sobre isso tudo.
Eis aqui alguns trechos:
Se tô tiririca
Tomo umas e outras pra baratinar
Arranco o rabo do satã
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
(…)
Se chamá polícia
Eu viro uma onça
Eu quero matar
A boca espuma de ódio
Diz também que ele nasceu em Tietê, interior de São Paulo. Bisneto de escravos angolanos, Itamar nasceu em 13 de setembro de 1949. De classe média, fez teatro e se envolveu com a música logo cedo, inspirado pelo ídolo Jimi Hendrix.
Aos 24, se estabeleceu em São Paulo. Quem morava no bairro de Pinheiros nos anos de 1980 e 1990 acostumou-se a vê-lo, aquela figura excêntrica, altiva e estilosa, andando pelas ruas Teodoro Sampaio, Praça Benedito Calixto e adjacências. Naquela época a cena cultural e underground de São Paulo era intensa. Casas de shows e música proliferavam pelo centro, brechós que resgatavam uma moda vintage vestiam a turma, e nas famosas galerias do rock se encontravam ou se estranhavam punks, metaleiros, o pessoal do hip-hop, velhos hippies e todo tipo de maluco beleza que se pode imaginar. Nada como duas décadas perdidas para estimular a criatividade.
Itamar certamente ajudou a fundar a boemia de Pinheiros e Vila Madalena, mas consta em uma matéria da Veja São Paulo (“A São Paulo de Itamar Assumpção”, 02/01/2013) que ele gostava era de bater perna na Penha, zona leste paulistana, onde morou até morrer de câncer, aos 53 anos. Viveu pouco, mas deixou um legado importante. Com sangue, plasma, corpo e alma, ele pulou de cabeça na música. Traduziu sua época, sua experiência e seu entorno e, a partir de suas particularidades, se tornou universal.
Carolina Maria Ruy é jornalista, pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória Sindical (CMS).
Fonte: Vermelho
Ouça aqui o álbum Isca de Polícia
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