Por Ana Palacio (Project Syndicate)
MADRI – Outra batalha amarga foi travada no Congresso dos EUA – e não resultou em nada. Os Republicanos dos EUA mais uma vez usaram a obstrução para frustrar a legislação destinada a combater novas restrições de voto no País, e os Democratas falharam em alterar as regras de obstrução para que fosse aprovada. A saga exemplifica o tumulto, polarização e paralisia que têm engolido a política americana e vão sem dúvida nenhuma moldar as eleições parlamentares de meio de mandato de novembro. Esse estado de coisas deve preocupar o resto do mundo.
A última vez que a geopolítica definiu os assuntos mundiais, os EUA se destacaram como um líder global e campeões dos interesses ocidentais e valores democráticos. Hoje, como a crise em curso nas fronteiras da Ucrânia mostra, o mundo precisa que a América repita esse papel. Ainda, os EUA são um escudo do líder que já foram, e a polarização doméstica é em grande parte a culpada.
Não há bala de prata. Mas, um número de ideias avançou, de chamadas diretas para deixar de dar aos extremistas plataformas, para propostas detalhadas para revitalizar a cidadania através do serviço nacional obrigatório. De algumas maneiras, o último esquema chega ao cerne do desafio.
Os americanos precisam se reconectar com um sentimento de propriedade compartilhada de seu País e sua trajetória. Eles devem assumir responsabilidade por seu futuro, incluindo contribuir diretamente para o processo de traçar um caminho a seguir. Caso contrário, o processo de adesão popular permanecerá enganoso.
Nos anos recentes, a sociedade americana foi dividida por mal-entendidos e desconfiança. Criando câmaras de eco orientadas por algoritmos, as plataformas de mídias sociais aumentaram esses problemas, reforçando as visões existentes das pessoas, desacreditando oponentes, e facilitando a emergência de uma muito zelosa “cultura do cancelamento”. A autorreflexão honesta e o diálogo aberto necessários para permitir reforma e reconciliação se tornaram quase impossíveis.
Como os líderes políticos aprenderam a capitalizar a polarização, a situação se deteriorou mais ainda. A retórica e políticas populistas, isolacionistas e inconstantes do ex-Presidente Donald Trump exacerbaram a polarização e alimentaram a volatilidade. Agora, a cientista política Barbara F. Walter avisa, os Estados Unidos estão “mais perto de uma guerra civil do que qualquer um de nós gostaria de acreditar.”
Eu não tenho o desejo de pregar para os americanos sobre o que é do seu interesse político. Isso é um hábito antigo dos europeus, e é paternalista nos melhores tempos. É ainda mais inapropriado em uma época quando os europeus estão confrontando nossa própria marca de extremismo e impasse.
Mas o fato é que o fraturamento da sociedade dos EUA afeta a todos nós. Mais obviamente, a política polarizada da América está moldando suas políticas econômicas, climáticas, de defesa, de agricultura e estrangeira. A recente iniciativa liderada pelos Republicanos de impor sanções no gasoduto russo-alemão Nord Stream 2 – apesar da ameaça que isso colocaria tanto para a estratégia do Presidente dos EUA, Joe Biden, com a Rússia, quanto para o relacionamento da América com a Alemanha – é um caso à parte.
Mas o problema é mais profundo do que qualquer política individual. Depois de décadas de ênfase em considerações econômicas, a geopolítica voltou a ocupar o centro do palco globalmente, com grande competição de poder impulsionada pela ideologia se intensificando precisamente no momento em que a democracia liberal perdeu seu brilho e o autoritarismo está ganhando terreno. Esta competição está acontecendo em várias áreas geográficas (Ucrânia, Venezuela, Cazaquistão, Taiwan) e até sangrando na esfera econômica (como com o Nord Stream 2 ou a gigante de tecnologia chinesa Huawei).
A União Europeia está bem familiarizada com esse imperativo. Como os EUA, a UE está se tornando cada vez mais fragmentada, e está lutando para esclarecer sua razão de ser na era moderna. Para enfrentar esse desafio, a UE lançou a Conferência sobre o Futuro da Europa. Ideia do Presidente francês Emmanuel Macron, a Conferência implica em uma série de conversas lideradas por cidadãos, focadas em esclarecer os desafios e prioridades da Europa e ajudar a “moldar nosso futuro comum.”
Por mais atraente que o conceito possa parecer, contudo, a Conferência se parece muito com uma folha de figueira idealista cobrindo a ineficiência burocrática. Em qualquer caso, para os EUA mesmo tentar tal iniciativa, precisaria primeiro alcançar algum consenso sobre o que significa ser um americano.
Aqui, os Republicanos e os Democratas atualmente subscrevem visões nitidamente contrastantes, como a pandemia de COVID-19 deixou claro. Se os americanos não podem concordar em uma compreensão compartilhada de seu presente – incluindo, crucialmente, a posição de seu País no mundo – como eles podem começar a discutir uma visão comum para seu futuro?
Os EUA estiveram aqui antes. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, os EUA estavam profundamente divididos. Tanto por políticas nacionais que mudaram muito a paisagem (como o New Deal), quanto por opiniões conflitantes sobre o que o envolvimento dos EUA na guerra devia implicar. Ainda a Segunda Guerra Mundial é lembrada como um “momento de cortesia doméstica americana.” Enquanto essa mudança pode ser parcialmente atribuída a hábil liderança política de Franklin D. Roosevelt, foi o ataque japonês a Pearl Harbor que assegurou amplo apoio público para os EUA entrarem na briga.
Mas um inimigo comum trabalha para unir um País apenas se todos concordam em quem o inimigo é. Dado que a COVID-19 – um inimigo compartilhado pelo mundo inteiro – apenas endureceu a divisão partidária dos americanos, é claro que isso é mais fácil dizer do que fazer.
Em esclarecer o papel da América no mundo, a perspectiva de um estrangeiro pode ser útil. Não americanos tendem a ter uma ideia clara do que os EUA historicamente representaram: ingenuidade, generosidade e democracia.
O caminho para uma América reunida, agindo como um líder global confiável, não vai ser nem suave, nem em linha reta. Mas, dado como muitos atores estão ansiosos para tomarem vantagem do declínio da América, a Europa deve fazer tudo o que puder para ajudar os EUA a fazerem progresso. Assim como os EUA procuraram uma “Europa inteira e livre” depois que a Guerra Fria acabou, a Europa hoje precisa apoiar uma América curada e reconciliada.
Ana Palacio é ex-Ministra das Relações Exteriores da Espanha e ex-vice-presidente sênior e conselheira geral do World Bank Group, é conferencista visitante na Universidade de Georgetown.
Fonte: Project Syndicate
Tradução: Luciana Cristina Ruy
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