“Depois que ele deu o primeiro tiro, que pegou na mão, ele deu o segundo tiro, pegou no pescoço. Eu tenho um projétil alojado no pescoço. Eu pensei que ele ia me matar e matar as crianças.” O dia 23 de dezembro de 2017 ficou marcado para sempre na memória de Luciana dos Santos. A psicóloga é sobrevivente de uma tentativa de feminicídio por arma de fogo cometida pelo ex-marido.
O caso aconteceu após o ex-marido de Luciana descobrir que ela pretendia se separar. Luciana tomou a decisão depois de anos vivendo um relacionamento abusivo com traição e violências psicológica, patrimonial e moral, todas tipificadas na Lei Maria da Penha. Ela foi alvejada por três tiros dentro de casa e não entrou nas estatísticas de feminicídio por pouco.
“Quando eu abria porta, eu vi que a polícia estava em frente a minha casa, tinham três viaturas passando, o policial ouviu o primeiro tiro, pararam, desceram com o fuzil na mão. Eu gritei para ele (ex-marido) e disse: ‘é a polícia’. Nesse momento, ele estava dando o quarto tiro”, relata ao Brasil de Fato a psicóloga, que mora no município de Hortolândia, no interior do estado de São Paulo.
O ex-marido de Luciana não respeitou a ordem da polícia e começou a atirar na direção dos policiais. O homem acabou morto durante a troca de tiros. Já Luciana sobreviveu, mas carrega em seu corpo as sequelas da violência. Além do projétil alojado no pescoço, ela perdeu também parte da mobilidade do braço.
Casamento, ciúme e controle
Luciana casou-se ainda adolescente, aos 17 anos, com o homem que veio a ser o seu agressor. Ele não era desconhecido da família. Na verdade, era primo de segundo grau da vítima, que viveu a sua infância e adolescência no interior de Minas Gerais.
De costumes tradicionais, Luciana frequentava desde cedo a igreja evangélica Congregação Cristã. Como na época a religião não permitia que os integrantes casassem com pessoas que não pertenciam à religião, o seu futuro marido passou a frequentar a igreja para selar o matrimônio. Ao todo, foram 12 anos na Congregação Cristã.
Após dois anos de casados veio o primeiro filho e quando ainda estava grávida da segunda filha, o casal decidiu mudar-se para a cidade de Hortolândia. O marido concluiu o Ensino Médio e foi trabalhar como porteiro. Mas logo conseguiu uma oportunidade no setor de construção civil e começou a fazer carreira na área. Luciana, no entanto, só conseguiu concluir o ensino básico depois do marido. Passou em um concurso público dos Correios, porém não tinha acesso ao seu salário, que era usado integralmente para manter as contas da casa.
Violência financeira
“A violência financeira que eu sofri era assim, todas as contas da minha casa eram debitadas na minha conta porque como ele era autônomo, ele pegava o dinheiro em mãos. Eu nunca tinha dinheiro. Quando que eu precisava de alguma coisa, eu tinha que pedir para ele. Sempre que eu pedia, ele nunca tinha”, detalha a psicóloga.
Após entrar na faculdade, a situação piorou. Segundo Luciana, o ciúme ficou mais intenso, as brigas e discussões aumentaram e as tentativas de desestabilização emocional passaram a ser mais frequentes.
“Outra técnica que era usada muito de manipulação era discutir à noite. Eu chegava meia noite cansada e ele discutia comigo até o outro dia, até o celular despertar para levantar. Isso era muito comum, principalmente se eu falasse que tinha uma prova importante no dia seguinte. Hoje eu sei que era uma manipulação psicológica”, afirma.
Armamento em defesa da família?
A situação ganhou outro contorno em 2015, quando o então marido da psicóloga resolveu adquirir uma arma de fogo. O revólver calibre 22 foi comprado do sogro de Luciana. Segundo ela, o principal argumento era para “defender a família”.
“Ele comprou uma arma do pai dele e dizia que essa arma era para defender a família, que cidadão de bem tinha que andar armado e ele carregava essa arma no carro”, conta a sobrevivente. Além disso, era relata que o ex-marido não possuía a documentação para ter o revólver.
O medo de Luciana tinha fundamento. O estudo O papel da arma de fogo na violência contra a mulher, lançado em 2021 pelo Instituto Sou da Paz com base em dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde sobre mortes e lesões provocadas por armas de fogo no Brasil entre 2012 e 2019, mostra que a arma de fogo é o principal instrumento empregado nos assassinatos de mulheres no Brasil.
De acordo com o estudo, entre 2000 e 2019 a violência armada esteve presente em 51% dessas mortes.
Isso significa que, dos 4 mil casos de óbitos femininos por agressão registrados em média por ano, a arma de fogo foi o meio empregado em mais de 2 mil deles, segundo a pesquisa. O Sou da Paz aponta ainda que, entre 2012 e 2019, o pior ano foi 2017 com 54% dessas mortes, ano em que Luciana sofreu a tentativa de feminicídio em Hortolândia.
Para o advogado e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, o motivo alegado para a compra da arma é sempre “nobre”, de proteção da família, porém, os motivos do “uso” é para destruí-la, seja por violência doméstica, acidentes ou suicídios.
Gatilho
“As principais mudanças que impactam na violência contra a mulher é que está mais fácil comprar a arma, e a fiscalização dos requisitos piorou muito. Há baixa checagem dos documentos como antecedentes, aumentando as fraudes na compra. E hoje este homem que comprou a arma só precisa reapresentar um teste psicológico ou um novo atestado de antecedentes, 10 anos depois. Antes eram cinco. O que permite que muitos homens com Boletim de Ocorrência e processos com violência doméstica sigam na posse desta arma, ameaçando e violentando mulheres”, destaca o autor do livro Arma de fogo: Gatilho da violência no Brasil.
O advogado aponta ainda a urgente necessidade de voltarem as regras de verificação de requisitos e análises dos policiais antes da autorização da compra da arma.
“É fundamental tirar do papel e instruir melhor as polícias e Ministérios Públicos cumprirem a Lei 13.880 que prevê em casos de violência doméstica a verificação de registros de armas em nome do agressor, pedindo a apreensão imediata para resguardar a mulher. Além disso, é importante que prefeituras e governos estaduais criem casas de acolhimentos que as delegacias possam acionar imediatamente para remover mulheres em alto risco do lar”, explica.
Luciana hoje está viva para contar a sua história e atua profissionalmente ajudando mulheres vítimas de violência doméstica. “Sofro com essa história até hoje. Falo porque sei que é importante levar essa informação para outras pessoas, mas não é tão simples e fácil falar sobre isso porque remexe de novo. Mas eu faço, porque a cada vez eu falo, me sinto mais amparada e acolhida e salvando vidas. Se eu soubesse antes o que era violência financeira, violência sexual, moral e psicológica, eu não teria levado esse sofrimento por tantos anos”, conclui.
Como buscar ajuda?
Mulheres que estão em situação de violência doméstica podem buscar ajuda ligando 180. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes. O serviço também fornece informações sobre os direitos da mulher, como os locais de atendimento mais próximos e apropriados para cada caso: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.
Em casos de emergência, é necessário ligar para a polícia no número 190. Ou procurar uma das Deams, unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência. As atividades das Deams têm caráter preventivo e repressivo, devendo realizar ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal.
Fonte: Brasil de Fato