Por Carolina Maria Ruy
Marcado pela reação aos efeitos globais do neoliberalismo, o início do século 21 foi de grandes transformações mundiais. Segundo o sociólogo Emir Sader, em seu livro A Nova Toupeira (2009), a virada do século 20 para o 21 viveu “uma fase de resistência, de defesa contra a virada regressiva de proporções históricas gigantescas, operada pela passagem de um mundo bipolar para o mundo unipolar, sob a hegemonia imperial norte-americana, e do modelo regulador para o modelo neoliberal”.
Para ele as manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, 1999, sinalizaram a extensão do mal-estar diante do modelo hegemônico e o potencial popular da luta de resistência. Naquelas manifestações milhares de pessoas, entre as quais ecologistas, anarquistas, trabalhadores sindicalizados, militantes operários, estudantes, pacifistas e humanistas mobilizaram-se por mudanças sociais, econômicas, políticas e ambientais nas ruas de Seattle, de 30 de novembro até a queda da chamada “Rodada do Milênio”.
De fato, como ponderou o sociólogo, aquele foi um sinal dos novos tempos, no qual vimos emergir governos de esquerda na América Latina, como os de Hugo Cháves, na Venezuela, em 1998, Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil, em 2002, Néstor Kirchner, na Argentina, em 2003, Tabaré Vázquez, no Uruguai, em 2004 e Evo Morales, na Bolívia, em 2006.
O sucesso e a derrocada, a partir da crise da bolsa de 2008, daqueles governos latino-americanos tem relação com o valor das commodities na economia internacional, como defendem os cientistas políticos Daniela Campello e Cesar Zucco, no artigo Frustração com economia alimenta revoltas na América do Sul (Ilustríssima, 17/11/2019).
Mas a análise fria dos cientistas não é suficiente para explicar a história destes países em sua complexidade social, econômica, política e, muito importante, cultural. Mais do que isso, assim como a estatística pode ser manipulada para camuflar realidades (uma boa média, por exemplo, pode esconder grandes disparidades), uma análise esquemática, laboratorial, esconde o acirrado embate que existe por trás da ascensão de governos, levando-nos a um conformismo determinista com relação aos rumos da história.
Segundo Campello e Zucco, “a partir de 2003, um cenário internacional excepcionalmente favorável para as economias sul-americanas permitiu uma aceleração das taxas de crescimento, com redução generalizada da pobreza e da desigualdade de renda sob governos de diferentes matizes ideológicas. A reversão deste cenário no final de 2011 e a piora das condições de vida que se seguiu desde então vêm acirrando conflitos distributivos, favorecendo a polarização e tornando os países da América do Sul mais vulneráveis a protestos e convulsões”. De fato, assistimos vultuosas massas irem para as ruas no Brasil, em 2013, e no Chile, Bolívia e Equador, mais recentemente.
Os analistas afirmam que, de Álvaro Uribe, na Colômbia, à Hugo Chávez, na Venezuela, o período que vai de 2003 a 2011 foi “de exuberância econômica e aumento generalizado do bem-estar”, mas atribuem à “sorte” a variação nas condições exógenas enfrentadas por diferentes presidentes sul-americanos, sendo, nestes casos, a economia quase independente das políticas públicas. “Governos são mal avaliados durante períodos desfavoráveis e bem avaliados naqueles favoráveis, independentemente da qualidade de suas ações”, dizem.
Nesta análise, o projeto implementado no governo Lula, por exemplo, entre 2003 e 2011, com programas de redução da miséria e inserção das classes mais carentes, como o Fome Zero e o Bolsa Família, não se deu com base em uma concepção política. O artigo publicado na Ilustríssima defende que a flagrante melhora na vida dos brasileiros naquele período ocorreu ao sabor da sorte ou, pior, por determinação de um ciclo preestabelecido. Fosse Lula ou FHC, fosse Temer ou Bolsonaro, as condições dadas para a as benfeitorias econômicas seriam bem aproveitadas e revertidas para a população carente e para o desenvolvimento social.
Nesta análise faltam elementos que proporcionem uma melhor compreensão sobre a dinâmica que faz com que governos progressistas sejam eleitos ou depostos.
É certo que a situação das commodities e da economia chinesa, sobretudo após a crise de 2008, afetou a América do Sul. A agudização dos conflitos sociais e econômicos, entretanto, advém muito mais da disputa por poder de setores da elite, do ponto de vista nacional, e da disputa por hegemonia, do ponto de vista internacional. Ou seja, a crise procedente da quebra da bolsa que inevitavelmente repercutiu nas econômicas sul-americanas foi uma brecha para a tomada abrupta de poder e deposições precoces, com manipulações das leis e dos meios de comunicação a fim de criar uma mentalidade avessa à governos progressistas.
A ascensão de governos de esquerda na América do Sul no início do século 21, está relacionada, como disse Sader, a uma reação à crise econômica das décadas de 1980 e 90, dominadas pelo modelo liberalizante de Reagan e Thatcher, e a uma incapacidade deste modelo em resolver problemas como o desemprego e a pobreza. Está relacionada também ao crescimento e a consolidação dos movimentos sociais, antes sufocados por regimes ditatoriais.
Mas, assim como ocorreu quando estes países sofreram golpes nas décadas de 1960 e 1970, sempre que algum governo dá sinais de que está disposto a empenhar-se na superação da secular condição de exportador de matéria prima, as commodities, tanto governos mais ricos, como os dos EUA, quanto setores das elites locais, que se beneficiam do atraso (com mão de obra barata, por exemplo) reagem, lançando mão de todos os meios, lícitos ou ilícitos, para derrubá-los. Parece teoria conspiratória, mas é o que está acontecendo exatamente agora.
Filmes e livro que tratam do assunto
Recomento dois documentários que mostram, com registros históricos, como a ascensão da direita não pode ser explicada somente com base em gráficos e equações.
Um deles é Dossiê Jango (2013, Paulo Henrique Fontenelle). O filme exibe, entre outras coisas, gravações em áudio do embaixador Lincoln Gordon e do ex-presidente americano John Kennedy, que comprovam a preocupação americana com o momento político do País e que o ex-presidente Lyndon Johnson estaria disposto a agir no Brasil para instituir a ditadura e assegurar o afastamento de Jango.
Outro é Privacidade hackeada (2019, Karim Amer, Jehane Noujaim). O angustiante documentário releva as relações entre a empresa Cambridge Analytica, que usou informações pessoais de 50 milhões de perfis do Facebook, com a eleição do presidente Trump, nos Estados Unidos, e o referendo Brexit, no Reino Unido.
E um livro: Quando o Google Encontrou o Wikileaks (2014, Julian Assange). Assange revela como as redes sociais, como o Twitter, manipularam as grandes manifestações da chamada Primavera Árabe e foram decisivas para a deposição de governos. Revela também como o Google está atrelado ao governo estadunidense.
Carolina Maria Ruy, pesquisadora, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.