Por Marcos Aurélio Ruy
O novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui (2024), baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, vai além de retratar o sofrimento de uma família ao perder um ente querido nos porões do regime, onde a tortura desprezava o sentido de humanidade dos presos políticos.
Com um elenco afinadíssimo com os propósitos do roteiro e da direção, o filme mostra com candura o medo imposto pelo regime de orientação fascista às pessoas que pensavam diferente da ordem estabelecida. Mas mostra também a cara engraçada do medo impelindo à resistência.
No caso, a vida transtornada de uma família, igual a tantas outras, por causa do arbítrio, do ódio e da violência – a luta de classes levada ao ponto máximo de opressão sobre uma linha de pensamento.
São as consequências do passado no presente. Porque é preciso acertar as contas com o passado para seguir em frente, livrando-se de todos os males causados. E por isso não ter acontecido como deveria no Brasil, ocorrem desrespeitos à Constituição e à democracia através de conspirações presentes, que, descobertas, precisam ser rigorosamente punidas de acordo com as leis vigentes.
A atuação esplendorosa de Fernanda Torres, no papel de Eunice Paiva, e no final, a de sua mãe Fernanda Montenegro, sem uma palavra, além de Selton Mello como Rubens Paiva e o restante do elenco, deixa a obra ainda mais vigorosa.
Com foco na trajetória de Eunice Paiva, a mãe dessa família que escolheu lutar e vencer a ditadura. E conseguiu. Ela não se entregou, voltou inclusive para a universidade, cursou Direito, insistiu em esclarecer o “desaparecimento” de seu companheiro de vida.
Tanto insistiu que, anos depois da vitória da democracia, conseguiu o reconhecimento do Estado sobre a morte de Rubens Paiva. Ela, inclusive, passou a atuar em defesa da causa dos povos indígenas em várias ações sobre a posse de suas terras. A força de uma guerreira como milhares de outras mulheres contra todas as formas de opressão.
Sem pensar em vingança pura e simplesmente, o filme leva a pensar sobre os crimes de uma ditadura, chamada pelo jornal Folha de S.Paulo de “ditabranda”, como se tivessem sido poucos os crimes cometidos, com uma forma de superação. Superação que só pode acontecer com o reconhecimento dos crimes praticados pelas instituições que os cometeram e a responsabilização das pessoas que os cometeram. E com a recusa do Exército em revelar os documentos sobre a repressão à Guerrilha do Araguaia nos anos 1970, com tortura e mortes de dezenas de jovens guerrilheiros.
Ainda Estou Aqui conta a trajetória de uma família transtornada pela morte de um de seus integrantes nos porões do regime, no caso Rubens Paiva, um deputado cassado com nada de comunista, para simbolizar a trajetória de muitas famílias que sofreram a mesma sina.
Candidato ao Oscar em oito categorias, Salles tem a lucidez de temperar o filme com o sentimento da época onde a maioria da população não se envolvia na trama política e ainda hoje não se envolve como deveria, dominada pelo pensamento individualista e do empreendedorismo; o que a impede de se ver como pertencente à classe trabalhadora.
Assim a ditadura durou 21 anos. A maioria da população estava indiferente à repressão até um certo momento, quando a economia começou a ruir pela visão errada dos ditadores e pela submissão aos interesses dos Estados Unidos.
A importância desse filme reside em remeter o passado ao presente, no qual os resquícios da ditadura ainda são sentidos. Sentidos no golpe de Estado de 2016 e mais ainda na eleição de 2018 com a prisão ilegal e imoral do presidente Lula, e a consequente vitória de Jair Bolsonaro, sob os aplausos da maioria da mídia do capital. Tudo o que está acontecendo tem raízes no pensamento da ditadura de 1964, apoiada por muitos setores empresariais, inclusive da mídia.
O filme mostra claramente que a repressão prendeu e arrebentou muitas famílias no país inteiro. Muito importante destacar a necessidade desse filme num momento em que milhares de brasileiras e brasileiros defendem o retorno da ditadura como forma de impor as suas vontades antidemocráticas, racistas, misóginas, LGBTfóbicas, o seu ódio de classe.
Um filme para todas as pessoas assistirem antenadas com o presente para que não se repitam os erros do passado, para que as mentes democráticas estejam fortemente unidas para impedir avanços do capitalismo destruidor de vidas e sonhos sob a forma do fascismo.
Além de sua qualidade indiscutível com uma direção impecável, figurino, fotografia, encadeamento e roteiro também excelentes, o sucesso de Ainda Estou Aqui é revelador de que algo está se transformando nesta sociedade. Algo que pode fazê-la caminhar para um novo patamar de entendimento da vida.
Para desespero dos niilistas de plantão, Walter Salles expõe na telona mais que uma aula de história. Expõe o retrato de uma nação subjugada, maltratada, mas que se realimenta e se reinventa para suplantar a dor e implantar o amor como ordem geral. Deixa a crença na humanidade, no futuro, na vida. Com Oscar ou sem Oscar um filme para a história do cinema.
Porque ainda estamos aqui para repelir toda forma de desamor, de discriminação, de violência, de política feita com o fígado e não com a cabeça. Essa cabeça que pensa e que absorve tudo ao redor, Porque o vento está soprando as respostas que buscamos, como diria Bob Dylan.
Trailer oficial do filme
Marcos Aurélio Ruy é jornalista
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