PUBLICADO EM 01 de out de 2021
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Afeganistão: Onde está a construção do Estado?

O ocidente está ferido, a amarga experiência no Afeganistão azedou as atitudes em relação às missões internacionais para ajudar países e regiões frágeis a estabelecer instituições de governança eficazes. Mas, abandonar tais esforços completamente seria tanto imoral quanto perigoso.

Foto: pxhere

Por Carl Bildt (Project Syndicate)

ESTOCOLMO – De repente, “construção de nação” se tornou uma palavra suja, particularmente nos Estados Unidos. O trauma da derrota da América no Afeganistão desencadeou um recuo em pânico de um conceito que foi por muito tempo central para o pensamento de segurança dos EUA.

Depois dos ataques aos EUA de 11 de setembro de 2001, foi amplamente entendido que a invasão ao Afeganistão era necessária para negar a Al-Qaeda suas bases lá. E pelo mesmo símbolo, os ataques também lançaram um esforço mais amplo para livrar o mundo de territórios não governados, que podiam se tornar plataformas para o terrorismo internacional.

De uma perspectiva europeia, construção de nação nunca foi o termo adequado. Uma vez que as nações assumem muitas formas diferentes, a tarefa real é aquela de construção de Estado, para assegurar que os territórios sejam governados em uma maneira razoavelmente eficaz.

Esse foi certamente o caso no Afeganistão, depois que os EUA tombaram voltou a estrutura de governança do Taliban (tal como ela era). Evitar a Al-Qaeda ou outros grupos extremistas de retornar dependia de pôr novas estruturas de governança no lugar. Foi amplamente reconhecido do começo que não havia clareza entre as operações antiterrorismo e a construção do Estado.

Em suas memórias, o ex-Presidente dos EUA, George W. Bush, escreveu eloquentemente sobre o interesse estratégico que os EUA tinham em “ajudar o povo afegão a construir uma sociedade livre”, para negar uma base a futuros extremistas, e também fornecer “uma alternativa esperançosa à visão dos extremistas”. O problema com a missão liderada pelos EUA no Afeganistão não foi seu objetivo ou ambição, mas sim sua casual implementação e a falta de paciência estratégica para conduzi-la.

O Presidente dos EUA, Joe Biden, por sua vez, lamentou as “eternas guerras” da América, defendendo sua decisão de retirar todas as forças dos EUA do Afeganistão. Mas a verdade é que duas décadas não é um tempo muito longo, quando se trata de criar instituições de Estado legítimas e dignas de confiança. A questão, como um importante relatório dos EUA avaliando a missão no Afeganistão, observa, “pode ser descrita como 20 esforços de reconstrução de um ano, ao invés de um esforço de 20 anos.” No fim, a vontade política de sustentar o esforço tinha secado, e o País foi efetivamente devolvido ao Taliban.

Há muitas lições para serem aprendidas do fiasco do Afeganistão, e o debate vai certamente se acirrar por anos. Mas já deve estar claro que abandonar todos os esforços para promover estruturas de Estado e governança mais estáveis em partes do mundo frágeis e dominadas por conflitos é um erro estratégico de primeira ordem. Se áreas não governadas são simplesmente ignoradas, os problemas que elas geram vão inevitavelmente se espalhar para além de suas fronteiras, como vimos uma e outra vez. O risco, em última análise, será arcado por todos.

Isso não é para sugerir que operações no estilo do Afeganistão devam ser montadas continuamente – longe disso. Mas nem devemos ir para o extremo oposto de completo desengajamento. Para ter sucesso, operações de construção de Estado devem ser de longo prazo em suas perspectivas, com uma base ampla de recursos para recorrer, e serem sujeitas a liderança principalmente política, ao invés de militar. Com a OTAN evidentemente recuando de quaisquer ambições que ela previamente tinha a respeito disso, agora pode ser um bom momento para reconsiderar as capacidades que as Nações Unidas têm em executar a mesma função básica. Um grande estudo de 2005 pela RAND Corporation examinou o registro histórico, concluindo que operações de construção de Estado lideradas pelas Nações Unidas tinham um melhor histórico do que operações lideradas pelos EUA.

Para ter certeza, missões lideradas pelas Nações Unidas também encaram grandes desafios. A República Democrática do Congo recebeu uma sucessão de missões da ONU, desde seu primeiro dia de independência. O Sudão do Sul vai provavelmente exigir uma forte presença da ONU por muito tempo para vir. A Somália continua um trabalho em progresso, na melhor das hipóteses. E em Mali e através da frágil região do Sahel, a ONU e outras missões encaram deterioração das condições de segurança.

Mas ausentes esforços internacionais, essas áreas estariam bem piores do que elas estão agora. As consequências de seu caos e desespero para a segurança global e regional teriam sido terríveis. O terrorismo é apenas um dos problemas que podem seguir de estados falidos e regiões sem governo. No vácuo onde instituições de governança básica deviam estar, cibercrime, contrabando de vida selvagem, mineração ilegal, tráfico de armas e outras atividades malignas tendem a prosperar. E com a pandemia de COVID-19 ainda assolada, nós devemos lembrar que tais áreas também podem se tornar o lugar de novas ou descontroladas doenças contagiosas.

Para melhor ou pior, ajudar com construção de Estado – que varia de segurança a assistência médica, saneamento e educação – deve continuar parte de nosso esforço coletivo para manter a estabilidade global. Muitas pessoas ao redor do mundo estão compreensivelmente feridas pela amarga experiência no Afeganistão. Mas abandonar qualquer ambição de ajudar áreas frágeis a construir estados funcionais seria tanto imoral quanto perigoso.

Carl Bildt foi Ministro do Exterior da Suécia, de 2006 a 2014, e Primeiro Ministro, de 1991 a 1994, quando ele negociou a adesão da Suécia a União Europeia. Um renomado diplomata internacional, ele serviu como Enviado Especial da União Europeia para a ex-Iugoslávia, Alto Representante para a Bósnia e Herzegovina, Enviado Especial da ONU para os Balcãs e Copresidente para a Conferência de Paz de Dayton. Ele é Copresidente do Conselho Europeu de Relações Exteriores.

Fonte: Project Syndicate

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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