Por C.J. Atkins e Cameron Harrison

Livro “Abundância” é uma prova de como supostos “progressistas” defendem o neoliberalismo. Na foto: Partido Democrata aprova, em 1993 sob promessa de prosperidade, o NAFTA resultou em perda de empregos e enfraquecimento de direitos trabalhistas. Foto: reprodução de Today in Labor History.
A ala dos políticos financiados por grandes corporações dentro do Partido Democrata começou a promover uma nova palavra da moda: “abundância”. O argumento deles é, supostamente, simples — os problemas econômicos dos Estados Unidos decorrem de “regulamentações excessivas”. Se cortarmos regulações sobre moradia, energia e infraestrutura, afirmam eles, poderemos liberar o crescimento econômico e reduzir os custos para os trabalhadores.
Basicamente, desde que a torta cresça, todos ganharemos uma fatia maior. Não se preocupe com o tamanho da sua fatia em comparação com a do seu patrão. Se ele estiver prosperando, com certeza repassará um pouco desse crescimento para você.
Economia do gotejamento, alguém? Neoliberalismo com um verniz “progressista”? Mas o que tudo isso significa para os trabalhadores?
A agenda da “abundância” é apenas uma cortina de fumaça. Sob o capitalismo, a desregulamentação não cria abundância — ela apenas aumenta a exploração dos trabalhadores e do planeta. Os verdadeiros obstáculos à prosperidade não são os “gargalos burocráticos”, mas o próprio sistema capitalista, que acumula riqueza, suprime salários e resiste a qualquer política que ameace sua busca pela maximização do lucro.
Mais uma “terceira via”
O esquema da “abundância” está sendo promovido por alguns rostos mais jovens do universo dos think tanks democratas, mas tem pedigree antigo. Lembra de Bill Clinton, dos “Novos Democratas” e da “Terceira Via”? Isso nos trouxe a “reforma” do bem-estar social e o enxugamento do governo.
Sempre que essa ala corporativa reaparece com as mesmas ideias antigas, tenta nos convencer de que são ideias “inovadoras”. Desta vez, os nomes à frente são o colunista do New York Times, Ezra Klein, e o ex-redator da revista The Atlantic, Derek Thompson. E, como seus predecessores intelectuais, estão apresentando suas ideias como se fossem além das categorias de esquerda e direita.
No livro best-seller cujo título dá nome a essa tendência (Abundance, ou “Abundância”), os dois argumentam que princípios econômicos centrais como oferta e demanda se tornaram ideologicamente carregados. Os republicanos se concentram demais no “lado da oferta” e veem o corte de impostos sobre os ricos e o enfraquecimento do governo como o único caminho para o crescimento econômico.
“A economia do lado da oferta tratava de tirar o governo do caminho do setor privado. Cortar impostos para que as pessoas trabalhassem mais. Reduzir regulações para que as empresas produzissem mais”, escrevem eles na introdução de Abundance. Mas o que acontece quando o mercado não pode ou não quer fornecer aquilo de que a sociedade precisa a um preço acessível para todos — como, por exemplo, moradia?
Bem, é aí que, segundo os autores, os democratas entram em cena para ajudar — mas acabam agravando o problema. Ao focarem na demanda, os democratas teriam causado novas distorções no equilíbrio entre oferta e demanda.
“As promessas e políticas do progressismo”, dizem eles, “foram construídas em torno da ideia de dar dinheiro às pessoas — ou vales semelhantes a dinheiro — para que pudessem comprar algo que o mercado estava produzindo, mas que os pobres não podiam pagar.” Entre os principais exemplos citados estão o Affordable Care Act (Lei de Cuidados Acessíveis), cupons de alimentos, vales de moradia da Seção 8, bolsas Pell, créditos fiscais para cuidados infantis, Seguridade Social, salário mínimo, crédito fiscal para trabalhadores de baixa renda (EITC) — e a lista continua.
Cientes da popularidade dessas conquistas obtidas por meio de lutas populares ao longo das décadas, Klein e Thompson se apressam em reconhecer a importância dessas políticas: “Nós as apoiamos.”
Mas — e é um grande “mas” — os democratas teriam ficado tão focados em dar dinheiro aos consumidores para comprar o que precisavam, que prestaram menos atenção à oferta dos bens e serviços que queriam tornar acessíveis a todos.
Segundo os autores, o setor progressista do Partido Democrata “aprendeu a procurar oportunidades para subsidiar” e “pensava pouco nas dificuldades da produção” — as mesmas enfrentadas por incorporadoras imobiliárias, indústrias, seguradoras e semelhantes.
A solução, segundo os profetas da Abundância?
Um mundo “além da redistribuição”. Parar de se preocupar com desigualdade de renda e divisões de classe; liberar o poder das empresas para resolver os problemas da sociedade. Algo novo, novo, novo. Uma nova teoria da oferta. Uma nova forma de pensar a política. Novos meios de promover o crescimento.
Na realidade, porém, o que eles defendem é velho, velho, velho. Velha economia de direita. Velha política alinhada ao poder corporativo. E velhas ideias sobre como promover crescimento atendendo aos desejos do capital. Essencialmente, estão apenas sugerindo que a sociedade adote páginas do manual da direita — mas com uma capa de aparência mais “humana.”
O mito da abundância capitalista
Esse tipo de esforço para arrastar a esquerda política não apenas para o centro, mas para a direita, é constantemente popular entre os bem financiados e bem relacionados nos círculos do Partido Democrata. De vez em quando, eles conseguem vender essa ideia ao público também — como fizeram com Clinton na década de 1990.
Muitas vezes, no entanto, seus esforços não ganham força entre as pessoas trabalhadoras comuns, mesmo que façam sucesso entre certos liberais ricos ou novatos no Partido Democrata que não têm ideias próprias e estão apenas tentando se associar a uma plataforma e a uma fonte de financiamento de campanha.
Pesquisas recentes conduzidas pelo grupo Demand Progress revelam o quão impopular a mensagem da “abundância” realmente é. Apenas 12,6% dos eleitores disseram estar fortemente convencidos por ela, afirmando que estariam muito mais propensos a apoiar um candidato que defenda os temas da Abundância. No geral, menos da metade dos entrevistados disse que consideraria apoiar essa proposta.
Muitas pessoas da classe trabalhadora não veem com bons olhos o corte de regulações e a retirada de benefícios públicos como um programa que lhes interessa. Em contraste, a maioria dos eleitores democratas — que é justamente o público que os defensores da Abundância precisam convencer — 59% manifestaram preferência por uma mensagem “populista”, conforme a linguagem dos pesquisadores — ou seja, uma proposta que enfrente os monopólios corporativos e busque limitar seu poder sobre nossas vidas cotidianas.
Consistentemente, os números da Demand Progress mostraram o apelo de uma agenda de esquerda, pró-classe trabalhadora. Um impressionante 81,6% dos entrevistados apoiaram a ideia de “tirar o dinheiro da política, quebrar os monopólios corporativos e combater a corrupção”.
Os argumentos estilo Abundância, do tipo “fazer o bolo crescer” e baseados em temas como “reduzir as regulações que impedem o governo e o setor privado de agir”, tiveram um desempenho muito inferior. A realidade é que a maioria das pessoas não confia que as grandes empresas ou os patrões tenham seus melhores interesses em mente.
Um exame mais profundo das propostas da Abundância revela o tipo de “burocracia” que eles realmente querem eliminar. Ignoram completamente as demandas dos sindicatos por proteções como salários dignos, regras de saúde e segurança, e Acordos de Trabalho em Projetos (Project Labor Agreements). O programa deles despreza essas regulações, tratando-as como meros obstáculos — e não como conquistas importantes da classe trabalhadora contra a ganância corporativa.
A presidente da AFL-CIO da Califórnia, Lorena Gonzales, denunciou essa traição no início deste mês, reconhecendo que desregulamentar significa piorar as condições para os trabalhadores. “Abundância”, escreveu ela no X (ex-Twitter), “é apenas eliminar os padrões trabalhistas e ambientais que levamos décadas para conquistar.”
Para ilustrar ainda mais a questão, em uma discussão pública recente com o deputado Ritchie Torres (Democrata de Nova York) — que declarou sua lealdade à doutrina da Abundância —, o podcaster Josh Barro, outro entusiasta da Abundância, disse o seguinte:
“Quando olho para as políticas de Nova York que impedem a Abundância, frequentemente, se você investigar a fundo, vai encontrar um sindicato no final sendo o responsável.”
Os defensores da mensagem da Abundância querem rebaixar o nível do debate público. Dizem estar a favor de “mais de todas as coisas boas da vida”, enquanto a esquerda, ao defender o que eles chamam de obstáculos como regras e burocracias, favorece políticas que nos deixam a todos com menos. É um espantalho — um argumento falso —, mas eles o utilizam enquanto afirmam que sua doutrina representa “um retorno a uma tradição mais antiga do pensamento de esquerda.”
Eles chegam até a concluir o livro recrutando Karl Marx e Friedrich Engels para endossar, postumamente, sua causa, dizendo que os dois autores do Manifesto Comunista celebraram a superioridade do capitalismo em relação ao feudalismo porque ele pôs fim ao “travar da produção”.
“O objetivo de Marx não era desligar a máquina de produção, mas direcionar seus fins para uma abundância compartilhada”, dizem Klein e Thompson. “Ele errou em muita coisa, mas não é preciso ser comunista para reconhecer a sabedoria dessa análise.”
É verdade que os marxistas de verdade — não os liberais que o citam quando é conveniente ou convincente — acreditam na abundância. Marx e Engels de fato disseram que a tarefa era, citando novamente Klein e Thompson, “desobstruir as forças produtivas e tornar possível aquilo que antes era impossível de imaginar.”
O problema, conforme analisaram, é que o capitalismo não é capaz de fazer isso acontecer. O sistema capitalista não é projetado para atender às necessidades humanas; maximizar o lucro acima de tudo está no seu DNA.
Considere a desregulamentação das companhias aéreas nos anos 1980: sim, isso barateou as passagens inicialmente — mas a que custo? E a monopolização das grandes empresas aéreas?
A desregulamentação aniquilou sindicatos por meio de leis antitrabalhistas, reduziu salários em nome da “competitividade” e criou empregos precários.
Os entusiastas da “Abundância” chamariam isso de “progresso”.
Os trabalhadores sabem que não é, e os consumidores que hoje enfrentam preços abusivos por passagens aéreas também sabem.
A crise de produtividade do capitalismo
Os lucros corporativos nos EUA dispararam para 3,6 trilhões de dólares, um aumento de 80% desde 2020. No entanto, em vez de reinvestir na produção ou em salários mais altos, as corporações canalizam essa riqueza para recompra de ações e especulação financeira.
Basta olhar o que está acontecendo com empresas como a Stellantis. No mês passado, o sindicato United Auto Workers (UAW) divulgou um relatório argumentando que a indústria automotiva dos EUA poderia criar dezenas de milhares de empregos sindicais bem remunerados simplesmente utilizando melhor as fábricas já existentes, em vez de transferir a produção para o exterior e direcionar os lucros para Wall Street.
Conforme já publicado no People’s World, em 2024 os EUA tinham capacidade para produzir mais de 14,7 milhões de veículos, mas construíram apenas 10,2 milhões, deixando 4,5 milhões de unidades de capacidade não utilizada.
Essa lacuna, argumenta o UAW, é resultado direto de as corporações priorizarem “práticas de exploração máxima e corrida para o fundo do poço” — transferindo a produção para países de baixos salários enquanto cortam empregos domésticos.
Grandes capitalistas fazem isso para aumentar dramaticamente a exploração dos trabalhadores, a fim de lucrar enormemente.
Nossos capitalistas já não atuam para expandir a capacidade produtiva; eles simplesmente extraem mais dos trabalhadores enquanto investem menos no país e em seu povo. Será que os que pregam a tal da “abundância” acreditam mesmo que desregulamentar ainda mais essas mesmas corporações será a resposta para a precariedade do trabalho e para o mal-estar social?
Será que eles não entendem o poder do capitalismo monopolista?
Essa é simplesmente a realidade da nossa economia: é um sistema em decadência. A classe capitalista já não impulsiona a inovação, nem busca a prosperidade. Ela vive à custa do trabalho alheio, enquanto desmonta as regulações que antes continham seus piores excessos. Superexplora trabalhadores no mundo todo e ignora completamente o desenvolvimento sustentável, tanto das pessoas, quanto do planeta.
Embora os números da pesquisa da Demand Progress mostrem que os eleitores reagem muito mais fortemente a críticas populistas ao poder corporativo, esses argumentos também têm limites. Quebrar monopólios ou taxar os ricos, embora sejam reformas necessárias, não enfrentam o problema de fundo: o próprio sistema capitalista.
A verdadeira abundância exige planejamento socialista — uma economia em que a produção sirva às necessidades humanas, e não ao lucro.
Ela exige propriedade pública de setores-chave, sob controle democrático.
Até lá, a “abundância” promovida pelos democratas corporativos continuará sendo uma piada cruel — uma piada que beneficia apenas os ricos, enquanto deixa os trabalhadores com ainda menos.
C.J. Atkins é editor-chefe do People’s World.
Cameron Harrison é ativista sindical e organizador da Comissão Trabalhista do Partido Comunista dos EUA (CPUSA).
Texto traduzido do People´s World por Luciana Cristina Ruy
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